Outras tantas histórias de arcas de Noé que mimetizam o mundo

Pequim, San Diego, Berlim, Barcelona e Sydney, cidades que inscrevem episódios na história com mais de um século dos grandes jardins zoológicos mundiais. Herdeiros das antigas <em>ménageries</em>, coleções privadas de animais em cativeiro, os zoos mimetizam as sociedades e épocas. De espaços para mostra de animais exóticos, passando a centros de recuperação de espécies em risco de extinção, à discussão da sua utilidade futura. De permeio, os parques zoológicos contam-nos narrativas, tão grandes como as de sobrevivência a guerras mundiais, tão intimistas como as dos laços que unem tratadores e crias em luta pela sobrevivência.
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Zoo de San Diego

Herdeiro da homenagem ao canal do Panamá

As 20.27 do dia 23 de abril de 2005 ficariam para a história do mundo digital com o primeiro carregamento de um vídeo no YouTube. Jawed Karim, cofundador daquela plataforma, animou um vídeo com perto de 20 segundos de duração. Intitulou a peça de Me at the Zoo. Quinze anos volvidos, o filme mantém-se disponível para visualização. Os elefantes visados nos comentários de Karim já mereceram acima de cem milhões de visualizações. Informalmente, o Zoo de San Diego, na Califórnia, fez uma vez mais história, num mundo muito diferente daquele que o vira nascer em 1916.

Aquele que se tornaria o primeiro zoológico do mundo a desenvolver o conceito de recriação de habitats ao ar livre, nasceu sob a égide da Panama-California Exposition, mostra que durante dois anos, entre 1 de janeiro de 1915 e 1 de janeiro de 1917, atraiu mais de três milhões de visitantes a Balboa Park, em San Diego. Setecentos e trinta dias de mostra que celebravam a inauguração do canal do Panamá, em 1914.

O futuro zoo, nascido da visão de Harry M. Wegeforth, não herdaria apenas uma parte dos mais de 200 hectares da exposição, mas também espécies animais exóticas que estiveram em mostra. Com a cobrança de um valor simbólico de ingresso no recinto, o jardim zoológico de San Diego abria portas em 1922 e espantava os visitantes. Os grandes felinos movimentam-se livremente em áreas delimitadas por fossos. A nova estrutura não faria apenas história na abordagem aos animais em cativeiro. De 1925 a 1953, Belle Benchley afirmou-se como diretora daquele espaço e única mulher a liderar um zoo na época. "The Zoo Lady", como ficou conhecida Belle, elevou o zoológico de San Diego da escala local para a mundial.

Benchley, falecida em 1973, aos 91 anos, não assistiria à criação, em 1975, do centro de reprodução para espécies em extinção. Como também não partilhou a alegria de ver o único coala albino do mundo a nascer em cativeiro. Onya-Birri, o "menino-fantasma", como ficaria conhecido o pequeno coala, apadrinhado em língua aborígene australiana, juntar-se-ia à maior comunidade de coalas fora do país dos antípodas. Uma entre as mais de 650 espécies e 3500 animais que ocupam os diferentes habitats do zoológico e que recriam desde as florestas africanas aos ambientes da tundra siberiana.

Microcosmos deste nosso mundo, recriado no clima ameno do sudoeste da Califórnia, que serviu de palco àquele que ficou para a história como um filme maior da sétima arte. Em 1941 Orson Welles precisava de encontrar um espaço que recriasse para o filme Citizen Kane o zoológico que o magnata da imprensa William Randolph Hearst mantinha no seu castelo na Califórnia. A arquitetura do Zoo de San Diego, engendrada décadas antes por Louis John Gill, serviu como luva em mão para o olhar cinéfilo de Welles.

Zoo de Berlim

A resiliência de cinco anos em guerra

Em abril de 1945 o Exército Vermelho castigava Berlim, capital alemã, numa ofensiva que levaria ao soçobrar do coração do III Reich. O mundo sucumbia à guerra total há mais de cinco anos. Na grande metrópole alemã, uma estrutura criada em 1844, o Zoologisher Garten Berlin, enfrentava desde 1941 bombardeamentos sucessivos. Aquele que fora um dos mais belos parques da cidade tornara-se um campo de morte onde emergia uma torre de artilharia antiaérea. Dos mais de 3700 animais que pululavam no jardim zoológico de Berlim e aquário, antes do conflito global, apenas 91 sobreviveram à Segunda Guerra Mundial. Entre eles o hipopótamo Knautschke, acarinhado e alimentado pelos berlinenses.

Antecedendo o conflito mundial, em 1938, o regime nazi promovera a arianização da instituição, com a expulsão dos judeus dos quadros dirigentes do zoo. Hermann Göring, marechal do Reich, que escolheu o novo diretor do zoológico, não se escusava aos passeios em público com os leões.

Jardim que nos seus primórdios não agradou aos berlinenses, vendo-o afastado da cidade e com parca mostra de animais, não mais de cinco dezenas, doados por Frederick William IV, rei da Prússia. Parque que era uma quase extensão do conceito das popularizadas ménageries.

A posterior industrialização de Berlim, na década de 1870, trouxe fôlego à estrutura que, após a Grande Guerra, conseguia com algum sucesso ser palco para a reprodução de espécies em cativeiro. Os elefantes são disso exemplo. Seria, contudo, um gorila, ainda nos anos de 1920, a cativar o coração dos habitantes de Berlim para o seu zoo. Bobby, como foi apelidado o primata, ainda hoje "vive" no zoo alemão, ao ilustrar o logótipo da instituição.

O fim da Segunda Guerra Mundial marca uma nova etapa para o zoológico de Berlim. É requalificado e inicia o trabalho de conservação e reprodução de espécies animais, numa colaboração estreita com universidades e instituições congéneres e apoio de iniciativas conservacionistas.

São, contudo, histórias do quotidiano como a do pequeno Knut, nascido em cativeiro em 2006, que atraem as atenções mediáticas sobre o zoo berlinense. Knut foi o primeiro urso-polar a nascer em Berlim em mais de 30 anos. Rejeitado pela progenitora, foi alimentado pelo zoólogo Thomas Dörflein. Knut sobreviveu à provação das primeiras semanas. Dörflein, contudo, viria a falecer em 2008. Três anos depois, Knut, então um exemplar a pesar mais de 300 quilos, sucumbe a um ataque epilético.

A história emocionou o mundo, captando as atenções para uma instituição habitada por 20 mil animais, de 1500 espécies.

Zoo de Pequim

A casa de campo da imperatriz Cixi

O ano de 1908 assinala a morte da "imperatriz viúva" Cixi, governante da China por 47 anos. Cixi ascendeu da condição de concubinato ao trono que tomou aos regentes anteriormente nomeados pelo imperador. A imperatriz transformou o país, criou condições para a industrialização, alargou a rede de caminhos-de-ferro e a eletrificação das comunidades. A memória de Cixi reside naquele que é o mais antigo jardim zoológico chinês, na capital Pequim, criado em 1906. Quatro anos antes era construído o palácio rural para recolhimento da imperatriz Cixi. Edifício de estilo barroco, projetado por um francês e que viria, mais tarde, a integrar os terrenos do zoo da capital chinesa.
Nos seus 89 hectares o zoológico faz memória de um outro nome que a história talhou para a posteridade: Jean-Baptiste de Lamarck, naturalista francês do século XVIII que lançou as bases para a compreensão da evolução das espécies.

A nove mil quilómetros de distância do país que lhe deu berço, Lamarck é homenageado num extenso mural do jardim zoológico de Pequim. Estrutura fundada ainda no império, viria a assistir ao nascimento da República da China em 1912. Um zoo com antecedentes numa quinta para a prática de agricultura experimental e onde se fazia mostra de espécies animais provenientes de ménageries privadas.

Seria, contudo, a aquisição de animais à Alemanha que tornaria o Zoo de Pequim um sucesso público. Os visitantes estavam dispostos a pagar para entrarem no "Jardim das Dez Mil Bestas", como era conhecido.

Mais de um século volvido, 15 mil animais, provenientes de 450 espécies em representação de diferentes habitats da Terra, dão vida a 16 áreas de exibição. Entre elas, aquela que se tornou a joia da coroa da instituição, o Panda Hall. Criado em 1989, com uma área de dez mil metros quadrados, o habitat para o mamífero omnívoro revelou-se importante na reprodução da espécie em cativeiro. A baixa taxa de natalidade, a alta taxa de mortalidade das crias e a destruição do seu ambiente natural fizeram do panda-gigante uma espécie sob ameaça de extinção. Cenário desagravado a partir de 2016. O panda-gigante foi reclassificado como espécie vulnerável (antes classificada como ameaçada) na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN).

Programas de procriação que resultaram no caso específico do Zoo de Pequim no nascimento de aproximadamente 1100 crias, de 92 espécies, no ano de 2013. Entre estas, o gibão-de-bochechas-brancas, o takin-dourado (bovídeo) e o cervo-do-padre-david, animal considerado extinto na China até 1865, ano em que o missionário francês Armand David avistou alguns exemplares numa propriedade privada.

Zoológico que já em 2010 se viu envolvido numa polémica. Um artigo no jornal britânico The Guardian alertava para o consumo de carne de espécies exóticas num dos restaurantes do zoo. Defendeu-se o restaurante alegando que recebia as carnes de uma quinta legalizada para o efeito. Reprovou a World Wildlife Fund, descrevendo a prática como inapropriada.

Também o escritor norte-americano James Rollins não se mostrou encantado com o Zoo de Pequim, situando aí parte do enredo do seu livro de 2015 O Labirinto dos Ossos. Mais tarde confessaria que a visita ao zoológico da capital chinesa o impressionara negativamente.

Zoo de Barcelona

A afirmação de uma nova era

Em maio de 2019, o jardim zoológico de Barcelona abriu o debate sobre o futuro da instituição inaugurada nos idos de 1892. A direção do zoo, apoiada pelo município da cidade catalã, anunciou que não promoveria mais a reprodução de espécies que não estivessem em extinção. Todos os animais de espécies com um número de efetivos "saudável" seriam devolvidos aos seus habitats. Seguindo o caminho do seu congénere em Buenos Aires, Argentina, o Zoo de Barcelona afirmou-se como o primeiro parque animalista da Europa. Quando as zebras, os ursos, os elefantes e os cangurus que habitam o local morrerem, serão os últimos exemplares das suas espécies em Barcelona.

Uma decisão que não é consensual e que levou ao protesto público de muitos trabalhadores do jardim zoológico, estrutura que conta atualmente com dois mil animais, pertencentes a 300 espécies de todo o mundo. Entre os argumentos a favor da manutenção do zoológico o de que, atualmente, apenas 11 espécies podem efetivamente ser reintroduzidas nos seus habitats. O sapinho-parteiro-de-maiorca, a tartaruga-mediterrânea e o mocho-d"orelhas, estão entre elas.

A nova abordagem do Zoo de Barcelona à conservação de espécies animais contrasta com as imagens dos primórdios da instituição. Uma fotografia datada do início dos anos de 1890 mostra-nos um banqueiro local, Lluis Marti Codolar, farto bigode, chapéu de coco, bengala e envergando casaca, numa atitude de posse sobre uma cria de camelo. Esta, tal como dezenas de outros animais, incluindo o portentoso elefante Avi, foram uma oferta do homem de negócios catalão para a abertura do zoológico. Codolar começara em 1865 a colecionar animais na sua propriedade conhecida como Granja Velha.

Passo inaugural de um projeto de arquitetura que se instalou no Parque da Cidadela, herdeiro dos terrenos da Exposição Universal de Barcelona de 1888. A área já trazia história. Após a Guerra da Sucessão Espanhola, ali se instalara uma base militar. Corria, então, o ano de 1714.

O ano de 1889 marca uma nova etapa no zoológico de Barcelona. Os animais são divididos em três grandes áreas de exposição: primatas, quadrúpedes e aquáticos. Por seu turno, as centenas de aves de capoeira que pululavam no espaço contribuíam para as contas da instituição. A comercialização de ovos garantia uma parte considerável dos rendimentos do zoológico.

Com a segunda metade do século XX, a instituição aprofunda o seu contributo com o conservacionismo. É pioneira ao criar in situ, na Guiné Equatorial, um projeto de conservação de espécies locais.

Já em 2003, o zoológico de Barcelona comove com o anúncio da morte de Floco de Neve, o único gorila albino do mundo. Acolhido pela instituição quatro décadas antes, o primata fora vítima da caça furtiva nas selvas da Guiné Equatorial e único sobrevivente de toda a família. Floco de Neve deixou uma prole de 21 crias.

Zoo de Sydney

Casa para fauna singular

Quando em 1798 a comunidade científica britânica recebeu da longínqua Nova Gales do Sul, na Austrália, a gravura de um animal com bico de pato e corpo de castor, reagiu com descrença ao exemplar. Dir-se-ia o trabalho de um taxidermista apostado em inscrever nos compêndios zoológicos uma espécie animal impossível. Dois anos mais tarde, o Ornithorhynchus anatinus, mamífero semiaquático, ganhava lugar cativo nas classificações taxonómicas. Volvido pouco mais de um século, em 1920, os esquivos ornitorrincos faziam sucesso junto de quem visitava o jardim zoológico de Taronga, em Sydney.

Um zoo que nascera em 1916 da determinação do seu primeiro diretor, o zoólogo australiano Albert Sherbourne Le Souef. Em 1908, Albert visita a distante Europa e maravilha-se com o zoológico de Hamburgo, na Alemanha, encerrado em 1930. Fascinado com o conceito de parque zoológico, o cientista bate-se por um terreno nas margens da baía de Sydney. Consegue-o e perto de 20 hectares com vista privilegiada para a cidade australiana, capital do estado da Nova Gales do Sul, são apadrinhados com a expressão aborígene Taronga ("bela vista").

Volvido pouco mais de um século, Taronga é casa para perto de quatro mil animais, pertencentes a 350 espécies. Um zoo que a partir de 1960 adotou uma abordagem conservacionista. O ornitorrinco, símbolo da singularidade da fauna dos antípodas, ganhou então novos espaços. O complexo zoológico foi dotado de lagoas para a avifauna e de instalações com fins educacionais.

Taronga apostou em tornar-se um centro para a reprodução de espécies ameaçadas. Em 2016 anunciava o comprometimento com a conservação e a reprodução de dez espécies cujos efetivos mundiais se situavam no nível crítico na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais, entre elas o rinoceronte-de-sumatra, o elefante-asiático e o pangolim-malaio.

Em julho de 2009, Luk Chai fez história. A cria de elefante-asiático foi a primeira a nascer na Austrália. Dez anos mais tarde, em janeiro de 2019, seria Kartika, uma fêmea de tigre-de-sumatra, a inscrever o nome no quadro de honra do zoo australiano. Kartika pariu três crias em cativeiro. Contributo para elevar os efetivos de uma espécie em risco crítico de extinção. Em estado selvagem não existirão mais de 400 exemplares deste grande felino. Um rol de nascimentos que já em 2003 deixava o zoo australiano sob os focos do mundo. Uma cria de ornitorrinco nascia num dos habitats do zoológico.

Um sucesso na reprodução de espécies não isento de polémicas. Em 2006 um transporte de cinco elefantes-asiáticos mereceu escolta militar rumo ao aeroporto internacional de Banguecoque, na Tailândia. Um grupo de ambientalistas daquele país do sudeste asiático procurou travar a viagem dos grandes mamíferos. A tentativa mostrou-se infrutífera e os paquidermes conheceram a sua nova casa australiana. Uma viagem com fins reprodutivos e de pesquisa a longo prazo.

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