Tabárez é exemplo de resiliência no futebol e na doença

Nos oitavos-de-final, Portugal enfrenta o Uruguai, seleção orientada por um homem que resiste a uma doença neurológica
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Resiliência é a capacidade de superar ou recuperar das adversidades. É essa a palavra que melhor pode definir Óscar Tabárez, o selecionador uruguaio a quem chamam El Maestro.

Foi assim a sua vida quando era jogador profissional e ao mesmo tempo dava aulas no ensino primário de Montevideu; quando em 2006 assumiu o comando da seleção uruguaia determinado a elaborar um plano para recolocar o país no mapa do futebol mundial, após uma carreira de treinador com poucos sucessos; ou há dois anos quando lhe foi diagnosticada uma doença neurológica (síndrome de Guillain-Barré) que lhe afeta os nervos periféricos, mas que não o impede de continuar o trabalho em prol do futebol do Uruguai e que o torna numa das personalidades mais estimadas pelo seu povo.

É assim o grande líder da seleção do Uruguai que no sábado irá enfrentar Portugal, em Sochi, nos quartos-de-final do Mundial 2018. Será, por certo, uma equipa resiliente, bem à imagem de Tabárez, que irá entrar em campo, capaz de lutar até à exaustão para fazer sorrir El Maestro que, sentado no banco por causa das limitações físicas causadas pela doença, é uma figura omnipresente em todas as ações dos seus jogadores ou dos seus adjuntos, ou não fosse ele o professor que devolveu o orgulho a um povo louco por futebol.

Da escola primária até ao AC Milan

Óscar Tabárez nasceu há 71 anos, em Montevideu, numa altura em que o Uruguai era uma potência do futebol mundial. Em 1930, os uruguaios organizaram o primeiro Campeonato do Mundo e conquistaram-no, um feito que repetiram em 1950, três anos depois do nascimento de El Maestro, que durante a sua infância e adolescência assistiu a três dos dez títulos da Copa América da sua seleção até ao final dos anos 60.

O futebol começou cedo a fazer parte da sua vida, desde logo como defesa-central em cinco equipas modestas, tendo jogado na I e na II Divisão do seu país. Essa era uma época em que o dinheiro que ganhava no futebol não era suficiente, razão pela qual exercia também a profissão de professor primário na sua cidade natal.

Pendurou as chuteiras aos 31 anos, no Bella Vista, pequeno clube de Montevideu, onde iniciou a carreira de treinador em 1980. Foi um início de um percurso ascensional, que teve um primeiro sucesso quando, três anos depois, conquistou levou a seleção uruguaia de sub-20 à medalha de ouro nos Jogos Panamericanos. Seguiram-se depois alguns clubes sul-americanos, nos quais venceu uma Taça Libertadores pelo Peñarol (1987) e um Torneio Abertura com o Boca Juniors (1992). Antes deste sucesso na Argentina, teve os primeiros ensaios no comando da seleção uruguaia, primeiro na Copa América, em que foi finalista vencido perante o Brasil, e na fase final de um Mundial, mais precisamente no Itália 90, no qual foi eliminado nos oitavos-de-final pela seleção da casa.

Em 1994, abriram-se-lhe as portas da Europa, no Cagliari, onde assustou as grandes equipas italianas. Tirou depois um ano sabático, mas tinha já lançado as sementes que lhe permitiram dar o salto para o poderoso AC Milan para render Fabio Capello, em 1996. Não correu bem aquele que era o maior desafio da sua vida e em dezembro tornou-se no primeiro treinador despedido pelo presidente rossonero, o polémico Silvio Berlusconi.

Um novo futebol uruguaio e o prémio da UNESCO

Seguiu-se depois um percurso errático no Oviedo, Cagliari, Velez Sarsfield e Boca Juniors, até que em 2006, após quatro anos longe dos bancos, eis que surgiu o desafio da federação uruguaia. Queriam que Tabárez promovesse uma reformulação completa do futebol no país, desde a formação até aos seniores.

O futebol uruguaio passava por uma crise que abalava a crença de um povo, que saboreara o último sucesso em 1995 com a conquista da Copa América, que acabara de falhar o apuramento para o Mundial, prova em que apenas participara em três das últimas oito edições.

Óscar Tabárez podia concretizar o sonho de devolver o Uruguai aos anos de glória que viveu quando era criança e adolescente. Queria acabar com o estigma que ao longo dos anos foi crescendo, segundo o qual as equipas uruguaias eram violentas. O seu objetivo era que os jogadores recuperassem os princípios originais do futebol uruguaio: jogar bem, com atitude, mentalidade e sem deixar de meter o pé... mas sem violência. Isso, deixou bem claro desde o princípio, não aceitaria.

Os resultados não se fizeram esperar. Começaram a aparecer novos talentos e a nível sénior a seleção apurou-se para os três mundiais seguintes, além de ter conquistado a Copa América em 2011, em Buenos Aires, frente ao Paraguai, depois de eliminar a anfitriã Argentina. Esse título valeu-lhe a distinção de melhor selecionador do mundo para a Federação Internacional de História e Estatística do Futebol.

Mas talvez a maior distinção da vida de Tabárez foi a que recebeu um ano antes quando foi distinguido pela UNESCO com o prémio "Campeão do Desporto" para a educação, ciência e cultura, ao mesmo tempo que foi designado como embaixador da boa vontade. El Maestro foi apontado como "um dos grandes estrategas do futebol moderno. Um exemplo de disciplina, perseverança, espírito, mas também também de sensibilidade social".

Um povo emocionado com a sua doença

Tabárez é hoje o selecionador com mais jogos à frente de uma seleção em todo o mundo, com 175 partidas disputadas. "Sou um ladrão de ideias e de pensamentos, mas faço questão de analisar e interiorizar tudo para que depois não transmita coisas vazias, mas consiga dize-las de forma bonita." Foi assim que se definiu numa entrevista ao jornal argentino La Nación, na qual revelou que se inspirou muito no modelo de José Pekerman, atual selecionador da Colômbia, com quem partilhou várias horas de conversa.

El Maestro devolveu o orgulho à seleção uruguaia e ganhou o respeito e admiração de um povo. A maior prova disso foi a reação que despertou no público que encheu o Estádio Centenário de Montevideu, antes de uma partida com o Equador, de apuramento para o Mundial 2014, a 11 de setembro de 2012. Tabárez entrou no relvado apoiado em canadianas e visivelmente debilitado... confirmavam-se as notícias da doença neurológica do selecionador. As lágrimas apoderaram-se de alguns adeptos na bancada.

A doença de Tabárez passou a ser um tema tabu entre os uruguaios e o próprio selecionador nunca deu muita importância publicamente. "É uma doença crónica. Está um pouco melhor e às vezes há certas oscilações. Deixo tudo nas mãos dos fisioterapeutas, com os médicos", disse há dois anos, na Copa América, numa altura em que se levantaram muitas dúvidas sobre se continuaria no cargo.

É que durante os treinos para esse torneio usava um carro elétrico para se movimentar no relvado e só se conseguia manter em pé com a ajuda de canadianas. Foi a forma que encontrou para lutar contra as suas limitações. A resiliência é uma característica que não faz El Maestro baixar os braços. E a prova disso é que Óscar Tabárez está na Rússia a comandar orgulhosamente a sua seleção, sentado no banco. Mesmo assim quando o Uruguai marca, não é homem para ficar sentado, com dificuldade e com a ajuda de uma canadiana levanta-se a fazer o que mais gosta: celebrar os golos do seu Uruguai.

A imagem após o golo da vitória de Giménez diante do Egito, já perto do final, correu mundo e emocionou os uruguaios. Tabárez é o homem que não se rende, nem perante a doença, e frente a Portugal, no sábado, vai querer que os seus jogadores sigam o seu exemplo.

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