Na mão do frade José reluz uma das relíquias mais preciosas do convento franciscano de Santo António de Herbón, a poucos quilómetros de Santiago de Compostela. Trata-se de um objeto de veneração que não se guarda nem no relicário do impressionante altar barroco em talha dourada, nem na sacristia medieval onde o terramoto de Lisboa deixou uma brecha no teto de granito que faz parte da visita guiada ao monumento construído em 1396. O tesouro do convento, reconhecido hoje muito para lá deste vale verdejante onde se cruzam as águas de três rios (Ulla, Deza e Sar), está guardado no interior de uma estufa instalada nos jardins do edifício.."Nesta altura do ano, comemos quase todos os dias pimentos e enviamos também alguns para outros conventos em Noia ou em Santiago", afirma José, no calor abafador da estrutura construída sobre o mesmo terreno que acolheu pela primeira vez o célebre pimento jalapeño mexicano, trazido da região de Tabasco por um missionário franciscano por volta do século XVII. "Ao início, tentaram secá-lo para fazer pimentão, mas ao contacto com a água tornava-se negro e não foi muito popular logo de imediato", recorda o frade, um dos últimos seis habitantes do convento, e "foi durante as épocas de fome que o seu consumo, verde e frito, acabou por se generalizar"..A semente foi transmitida aos agricultores locais, que, longe do clima mexicano que amadurecia o fruto e sublimava o seu picante, foram aos poucos adaptando a planta a uma colheita mais precoce que permitia o consumo do pimento doce e verde. Durante séculos, o pimento plantado no vale húmido e ensolarado de Herbón, com temperaturas que durante os meses de verão oscilam entre os 27 graus de dia e os 15 de noite, foi conhecido pela cidade e pelo mercado da cidade de Padrón onde se vendia, a alguns quilómetros da localidade..No entanto, nos anos de 1980, a região perdia o direito a reclamar a exclusividade da valiosa semente zelosamente selecionada e transmitida de pais a filhos durante gerações e que chegou a ser dote de casamento e herança para as famílias da região. Uma casa de sementes de Múrcia registava a variedade de Padrón, fazendo que o cultivo do vegetal se espalhasse por outras regiões, não só no sul de Espanha mas também em Marrocos ou, mais recentemente, no norte de Portugal.."Um aroma inconfundível"."O que distingue o pimento de Herbón de outro pimento da variedade Padrón é o seu sabor e o seu aroma, que são inconfundíveis, uma vez provei um de outro sítio e sabia apenas a verde, e a forma habitual de disfarçar esta falta de sabor é adicionar muito sal", afirma Milagros Gonzaléz, que atualmente chefia a denominação de origem protegida (DOP) dos Pimentos de Herbón..Depois de décadas de tentativas frustradas, a DOP foi criada há uma década para defender o produto da região que, entretanto, se tinha popularizado um pouco por toda a Europa com a variedade Padrón, plantada noutras regiões. "Aqui as pessoas sabem que os pimentos de Padrón são plantados em Herbón, mas não no mercado em geral, por isso mantivemos a palavra Padrón nas nossas etiquetas", explica Milagros..Atualmente, são 26 os produtores que têm direito a utilizar o selo Pimentos de Herbón, dezoito dos quais reunidos numa cooperativa - A Pementeira - chefiada também por Milagros. "Nos nossos terrenos plantamos apenas as sementes transmitidas nos círculos familiares e não podem ser utilizadas sementes de fora, é um ponto essencial da denominação de origem, a semente e a sementeira, é um produto fresco que perpetua uma longa tradição local", ressalta a sorridente presidente depois de uma longa manhã passada num dos pequenos terrenos onde a cada dois dias se colhem à mão os novos frutos durante a temporada anual..Os que picam e os que não.Nos arredores do centro da aldeia de casas dispersas, numa rua estreita, surge o pequeno armazém da Pimenteira Carmucha, com quase 90 anos de atividade e quatro gerações de história, chefiada por uma verdadeira matriarca do pimento com 103 anos de idade. O neto, José Manuel Ferro, está à frente do negócio familiar, entre a colheita, a embalagem e a receção de encomendas ao telemóvel e através da internet. "É um trabalho escravo durante a temporada, muito duro, de manhã a colheita, sempre à mão, entre as 05.00 e as 12.00, e à tarde embalamos e distribuímos", afirma o produtor que é também vice-presidente da DOP..No interior do armazém, os pais de José embalam os pimentos à mão em sacos de 400 gramas, entre imagens religiosas e um ecrã de televisão que debita as notícias do dia. Carmucha, a mãe de José Manuel, seleciona em canastras os pimentos antes de estes serem embalados. "Estou a separar os picantes dos doces, o que interessa é ter o máximo de doces, embora deixemos sempre alguns picantes para que corresponda ao provérbio "uns picam, outros não"", graceja..Como consegue reconhecer os que picam? "Isso é um segredo", responde Carmucha, antes de o filho revelar, de forma mais ambígua, que se reconhecem "pelo tato e pela forma". Mesmo depois de séculos de seleção dos frutos doces para a sementeira, o ligeiro picante, associado ao tempo de exposição na planta, continua a manter a herança do pimento de Tabasco original.."Os pimentos foram trazidos pela primeira vez para a Europa por Cristóvão Colombo como uma alternativa à pimenta, chamavam-lhe mesmo a pimenta vermelha, que se popularizou mais em Espanha do que em Portugal, uma vez que Portugal tinha o comércio exclusivo da pimenta da Índia", sublinha a historiadora Dulce Freire, que dirige atualmente um estudo da Universidade de Coimbra financiado pelo European Research Council sobre as sementes implantadas na Península Ibérica desde o século XVIII..O pimento de Padrón encontra-se entre as diversas variedades estudadas pela responsável do projeto ReSEED. "Os pimentos eram produtos que se tornaram muito populares também porque têm uma grande facilidade de adaptação e têm um processo de autofecundação que facilita o seu cultivo." O projeto que pretende estudar como estas sementes se adaptaram do lado de cá do Atlântico prolonga-se até 2023. Nas pequenas hortas de Herbón, esse processo de adaptação e seleção confunde-se com as histórias de família..Um negócio de família.Num manto verde de plantas de pimento, José Manuel, sempre ao telemóvel, vai guardando os preciosos frutos num avental antes de os pôr numa caixa. "Hoje não temos meios para enfrentar a concorrência dos pimentos de Padrón vindos de outras regiões de Espanha e do estrangeiro", confessa. No ano passado, a DOP produziu cerca de 85 mil quilos de pimentos durante a temporada de 31 de maio a 31 de outubro, quando mais de seis milhões de quilos da variedade de Padrón passaram pelo mercado de referência Mercamadrid, na capital..Em Herbón, o pimento é antes de mais um negócio de família, cultivado em pequenos terrenos, em estufas não aquecidas e sem luz artificial desde março e nos pequenos campos desde que a geada desaparece a partir de maio. "É um trabalho que se prolonga muito para lá da temporada", sublinha José Manuel, "a partir de outubro temos as sementeiras, escolhemos sempre as melhores variedades, que deixamos amadurecer para utilizar as sementes no ano seguinte, plantadas a partir de março"..Um produto que é o resultado do microclima local e que José se orgulha de continuar a promover nos melhores restaurantes espanhóis, o que contribuiu para a sua popularidade entre os chefs de toda a Europa. "O mais difícil com este pimento é distingui-lo da planta quando estamos a colhê-lo, uma vez que só se vê a cor a verde", sublinha José..Mas quando o produtor compara o seu fruto com aquele produzido noutras latitudes, José não tem dúvidas na hora de encontrar as diferenças: "O pimento de Herbón tem habitualmente três pontas e é mais pequeno, tem entre 3,5 e 5,5 centímetros de longitude, para não falar do aroma, que não tem nada a ver com os outros tipos de Padrón.".Em face da concorrência, que alguns consideram "desleal" e sem possibilidade de ultrapassar a limitação dos minifúndios seculares, os produtores foram obrigados uma vez mais a adaptar-se ao clima, desta vez do mercado, com a criação de derivados do pimento que permitem prosseguir o negócio fora de temporada..A cooperativa Pementeira produz desde há alguns anos doce de pimento picante, ou mesmo bombons de pimento. A Pimentos Carmucha, por seu lado, aposta também no doce, bem como no pimentão verde moído - um regresso às origens -, e até mesmo, recentemente, num queijo artesanal aromatizado com pimento de Herbón..Também a marca de cerveja mais conhecida na Galiza se associou aos produtores locais para criar uma cerveja aromatizada com pimentos de Herbón. Na sacristia do convento franciscano, o frade José revela uma garrafa de licor de pimentos de Herbón produzido por ele em pequena quantidade e que só partilha com os visitantes do monumento. No pátio interior, outras duas plantas completam o jardim exótico - uma palmeira trazida da Palestina e uma oliveira transplantada de Jerusalém por volta do século XVIII. "Este licor foi uma aventura minha, mas não pretendo comercializá-lo, e um dia destes deixo de fazê-lo pois dá muito trabalho", confessa..Apesar de ter perdido a exclusividade do pimento, Herbón não deixa de reivindicar todos os anos a história do seu fruto mais desejado, no primeiro sábado de agosto, com uma festa dedicada ao pimento que inclui a degustação de quase uma tonelada do produto. Uma celebração cancelada neste ano por causa da pandemia de covid-19..A receita dos pimentos de Herbón."É um produto mais falsificado do que a Coca-Cola", suspira Lídia, que, ao fim da manhã, colhe pimentos numa faixa de terreno perpendicular à estrada nacional que liga Herbón a Padrón. Fora das cooperativas e da denominação DOP, a pimenteira vende a maioria do fruto da colheita nos mercados de Padrón e de Santiago de Compostela, como sempre o fizeram os produtores locais.."Neste ano está a ser mais complicado com o problema da pandemia, uma vez que muitos dos meus clientes são restaurantes que se encontram a meio gás ou fechados", ressalta Lídia, enquanto calcula as perdas em cerca de 40%. "Nós continuamos a trabalhar pois não podemos parar, ou estou a colher pimentos ou a vender pimentos", remata, antes de desaparecer por entre a folhagem densa dos pimenteiros..Do outro lado da estrada, a peregrinação pela história do pimento local desemboca na Casa Dios, o único café-restaurante em Herbón e o único onde se pode provar os pimentos locais. Ao balcão, Teodoro lamenta também a menor afluência ao local, entre clientes habituais, turistas ou peregrinos, uma parte dos quais portugueses, que percorrem o caminho português de Santiago que cruza a região. Na cozinha, os famosos pimentos colhidos mesmo ali ao lado começam a crepitar no azeite. Desde os anos sessenta que o fruto é o prato-estrela da casa, acompanhado com uma tortilha de batata ou apenas com cachelos (batatas cozidas com a pele)..No exterior, Lídia recorda o segredo para cozinhar a iguaria local: "É importante retirar o pé do pimento antes de fritar, com uma faca ou com a unha, para evitar amargar o azeite e melhorar a cozedura." Salpicados de sal grosso antes de servir, os pimentos voltam a reluzir, desta vez sobre uma travessa prateada..O escritor galego Álvaro Cunqueiro recompilava em 1973 outro dos segredos da confeção dos "pimentos franciscanos": "O segredo é que se façam pouco a pouco para não queimar, e que o azeite não esteja muito quente, podendo-se aumentar a temperatura ao final da preparação.".Ali ao lado, no Convento de Santo Antonio de Herbón, onde a história começou, o frade José não quer deixar lugar a ambiguidades sobre os verdadeiros pimentos de Padrón e não hesita em recorrer a um colega franciscano para demonstrá-lo: "Santo António também não era de Pádua, ele morreu em Pádua mas nasceu em Lisboa, por isso é Santo António de Lisboa."