O Aqueduto das Águas Livres é uma aventura de engenharia inédita para a época, com 60 quilómetros de galerias que traziam pela primeira vez água potável para Lisboa. As obras começaram antes da chegada ao poder do marquês de Pombal, mas foi como primeiro-ministro de D. José que este governante se tornou um dos portugueses que mais se beneficiaram com a obra ao alterar o plano inicial e fazer que novas condutas abastecessem as suas propriedades e a de amigos da alta burguesia e da nobreza..A água era então uma forma de poder e, se chegava a alguns chafarizes públicos, ia também abastecer palácios. Quem o afirma é uma dupla de investigadores, Fernando Teigão dos Santos e Pedro Costa, que nos últimos quatro anos exploraram muitas centenas de metros da infraestrutura do aqueduto e publicaram um livro com o resultado da expedição subterrânea da capital, A Lisboa Subterrânea do Marquês de Pombal..Dão um exemplo dos desvios que o marquês de Pombal promoveu: "A Galeria das Necessidades foi construída não para abastecer o povo mas o Palácio Real da Tapada das Necessidades e dela é feita uma derivação que cruza todo o bairro da Lapa e ia abastecer o palácio do próprio marquês, onde está hoje o Museu Nacional de Arte Antiga.".Para os investigadores Teigão dos Santos e Pedro Costa as galerias lisboetas estão ao nível das catacumbas de Paris e dos subterrâneos de Roma e o livro que publicaram pode ser definido como o "relato de uma aventura, com tanto mistério como património, porque conta como fomos descobrindo e chegando a vários locais onde ninguém ia há muitas décadas". Tudo nasceu num almoço junto ao Palácio dos Carvalhos, mais uma vez propriedade do marquês de Pombal: "Disseram-nos que havia um túnel que passaria ali por baixo. Quisemos saber se era verdade? A partir daí descobrimos uma parte da teia de galerias que estão por baixo da cidade de Lisboa que há muito não funcionam nem são visitadas." A curiosidade levou os dois amigos, conhecem-se há 20 anos e trabalham na área do Ambiente, a perceber que há muito por descobrir na capital subterrânea: "Sabíamos desta rede tão grande em torno do aqueduto mas desconhecíamos que chegaria a determinados locais e que ainda existia.".A investigação para o livro e a exploração das galerias foi sendo feita em paralelo durante os últimos quatro anos: "Tínhamos o conhecimento mais vulgar mas as fontes e os arquivos disponíveis não eram suficientes e sentimos necessidade de perceber melhor o que se tinha passado na altura. O foco não era apenas o das condutas mas também como as águas contribuíram para transformar a cidade e até que ponto as relações pessoais faziam as águas chegarem a quem?" Uma busca subterrânea em que correram algum perigo: "Os riscos da exploração foram sempre bem medidos - nas mochilas seguiam capacetes, luvas, botas, equipamento de espeleologia e cabos -, porque há galerias com gases tóxicos e mortais em pouco tempo. Tivemos de voltar para trás algumas vezes e regressar em melhores condições.".Lugares perigosos, enigmáticos e curiosos.O que se escondia atrás do armário.A aventura da Lisboa subterrânea começa no Palácio dos Carvalhos, onde existe uma ligação direta entre o chafariz em frente e a propriedade do marquês. "O palácio é o lugar que tem mais complexidade e continua a esconder locais fabulosos, como umas escadas calcificadas e um ambiente misterioso. A galeria está inundada e houve uma altura em que nos disseram "ali para a frente já não há caminho". Existia um abatimento de terras, mas até lá há caminho, escondido atrás de uma passagem com entrada pelo palácio. Uma porta que não era aberta há mais de meio século e que parece um armário. Não se sabia o que estava por trás. É um dos pontos mais enigmáticos." Segundo os autores, este benefício que o marquês teve no Palácio dos Carvalhos criou-lhe uma das maiores polémicas em 1780 ao ser acusado pelo "Coxo" das Águas Livres de apropriação indevida, mesmo que Pombal tenha sido autorizado a usar os "sobejos" da água do chafariz pelo rei. A justiça também teve de atuar no seu palácio na Rua das Janelas Verdes..Propriedades de Pombal com muita água.A reorganização das condutas das Águas Livres pelo marquês servia também os seus inquilinos, segundo os autores: "O acesso da água ao Palácio dos Carvalhos foi feito com planeamento, indo além de um aproveitamento dos "sobejos". Na verdade, os sobejos pareciam ficar para o povo, que sofriam com falta de água no verão. O marquês alugou o palácio a abastados comerciantes ingleses que tinham negócios com o Estado e o facto de a propriedade ter muita água valorizava-a bastante. Na mesma Rua Formosa, havia outra propriedade de Pombal e outro chafariz muito próximo. Ainda ao longo da galeria do Loreto, há outros dois casos que beneficiam os prédios de Pombal: as casas no Largo do Carmo e as próximas do Largo de São Paulo.".Túnel mistério por baixo do bairro da Lapa.A expedição ao "túnel mistério" que existe a meio do bairro da Lapa e que ia abastecer o Convento de N. Sra. dos Remédios e o palácio do barão de Porto Covo da Bandeira foi complexa: "Este túnel não estava referenciado na cartografia que tínhamos e é muito grande. Procurámos saber quem é que morava ali nos tempos do marquês e que poderia ser beneficiário daquela água. Não foi muito difícil, no século XVIII existiu ali o palácio do Barão que foi um abastado comerciante que enriqueceu durante o governo de Pombal. Descobrimos que ainda ia mais longe, ou seja, abastecia o palácio e ia para o convento. Só à terceira vez é que pudemos ir até ao fim possível, porque deparámo-nos com água com esgoto, muitos mosquitos e gases tóxicos.."Não querem espreitar aquele buraco?".Dentro das galerias das Águas Livres podem fazer-se muitos quilómetros, revelam os autores: "Entrar em São Carlos e descer até à estação dos Restauradores, ir até debaixo da Praça da Alegria e à Mãe-d"Água, da Assembleia da República até metade de Campo de Ourique, na Rua Ferreira Borges, e percorrer todo o bairro da Lapa por baixo." Muitos destes percursos, investigados nos últimos quatro anos, foram também observados quase por acaso: "Fomos ao Palácio Quintela e o proprietário ficou entusiasmado quando lhe batemos à porta. Havia uma galeria que passaria por ali - contou a história do avô que ia por uns túneis para os descobrir - e quando estávamos de saída ele disse: "Está ali um buraquinho, não querem ir espreitar'.".Rapel na Tapada das Necessidades.Foi um dos locais mais complexos para chegar, dizem os autores: "A parte inferior do subsolo tem uma rede de túneis com várias galerias e é necessário fazer rapel para descer vários metros e ir dar a uma mãe-d"água que abastecia as cozinhas do palácio. Tínhamos descoberto uma galeria que não estava na cartografia porque, atrás de uma porta verde com uma escadaria, esperávamos encontrar uma ligação à Pia Redonda. Aberta a porta, estávamos numa galeria diferente, com uma cisterna cheia de água com uns seis metros de altura. No sentido inverso, a uns 30 metros, encontrámos a passagem bloqueada por uma parede. Num restaurante perto, soubemos de uma parede que fechava um túnel que teria uns 50 metros e que, alegadamente, teria servido para a fuga do rei D. Manuel II para Mafra.".A Lisboa Subterrânea do Marquês de Pombal.Fernando Teigão dos Santos e Pedro Costa.Editora Caleidoscópio.256 páginas com muitas fotos, ilustrações e mapas