"Imprensa sem caráter", reagiu Jair Bolsonaro, na última segunda-feira, ao comentar as notícias sobre os quase quatro milhões de reais (ao câmbio atual, cerca de 700 mil euros) gastos pelo presidente da República com o cartão pessoal a que tem direito nos quatro primeiros meses de 2020..Bolsonaro, que antes de assumir o governo era crítico do uso do cartão e chegou a avaliar o seu cancelamento, argumentou que a imprensa não referiu que nesses gastos estão incluídas as despesas para trazer brasileiros da China no auge da pandemia no país oriental - ainda assim, os gastos mensais médios do atual presidente seriam superiores aos da antiga presidente Dilma Rousseff e quase o dobro dos do antecessor Michel Temer..No meio da polémica, a hashtag "mostra a fatura Bolsonaro" tornou-se um dos assuntos mais comentados e partilhados da rede social Twitter.."Com certeza não foi em canetas BIC, lanche em padaria e noodles caseiros que Bolsonaro dobrou para quase quatro milhões os gastos com o cartão corporativo, aquilo não era humildade, era marketing, afinal você gastou com o quê Jair Bolsonaro, o povo pagador de impostos precisa saber #mostraafaturabolsonaro", aproveitou para escrever Gleisi Hoffmann, presidente nacional do Partido dos Trabalhadores, aludindo na sua publicação aos supostos hábitos frugais do presidente..Nando Moura, influencer de extrema-direita que rompeu com Bolsonaro, acrescentou "o "mito" gastou 3,76 milhões, mais do que a Dilma e o Temer e não quer mostrar a fatura para o povo? Mostra logo safado, quero saber se é boa lagosta o que eu paguei para encher o seu bucho #mostraafaturabolsonaro"..Para o colunista conservador do portal UOL Reinaldo Azevedo, "esconder gastos com cartão corporativo é para monarquia absolutista, não república"..Apesar da pressão, o presidente ainda não mostrou a fatura..Como não mostrou os exames efetuados ao Covid-19, outros dos tabus que insiste em manter nos últimos meses. O caso chegou até ao Supremo Tribunal Federal (STF), a última das quatro instâncias judiciais no país, nesta terça-feira..Em visita oficial aos Estados Unidos, em março, 25 membros da comitiva de Bolsonaro contraíram o vírus - incluindo o seu secretário de comunicação Fábio Wajngarten e dois ministros, Augusto Heleno, principal conselheiro do presidente no Gabinete de Segurança Institucional, e Bento Albuquerque, titular da pasta das minas e da energia..De então para cá, também o motorista do presidente foi internado com Ccvid-19 e o seu porta-voz testou positivo..Bolsonaro fez o teste na ocasião e especulou-se sobre o resultado positivo depois de a emissora norte-americana Fox News o ter garantido, com base numa confirmação telefónica de Eduardo Bolsonaro..O correspondente da estação na Casa Branca, John Roberts, escreveu que "o filho de Bolsonaro disse à Fox News que o teste preliminar para coronavírus ao seu pai deu positivo. Eles aguardam resultados de um segundo teste"..Afinal, momentos depois, o deputado federal e terceiro filho do presidente desdisse-se..E logo a seguir Bolsonaro mostrou nas redes sociais uma fotografia onde fazia um manguito (banana no português local) sob a palavra "negativo"..Perante a dúvida, a Câmara dos Deputados deu 30 dias para o Planalto divulgar informações sobre os dois exames aos quais o mandatário foi submetido - o prazo termina neste fim de semana..Também o jornal O Estado de S. Paulo requereu aos tribunais a apresentação dos laudos do teste, alegando interesse público..A publicação conseguiu o direito a ter acesso aos laudos mas a Advocacia Geral da União (AGU), instituição pública que defende o governo na justiça, apresentou apenas relatórios médicos..O juízo de primeira instância entendeu que os relatórios não atendiam à ordem judicial "de forma integral" e deu mais 48 horas para que a determinação fosse cumprida..Na tentativa de não apresentar os resultado dos exames, o governo recorreu então à segunda instância, onde o desembargador André Nabarrete manteve a decisão inicial..Com a segunda derrota em mãos, a AGU foi ao Supremo Tribunal de Justiça, terceira instância, para obter finalmente sucesso graças ao juiz Otávio de Noronha, para quem "há flagrante ilegitimidade" na ordem dada pelas instâncias inferiores..É nesse contexto que o STF, a mais alta corte do país, é chamado agora a intervir a pedido mais uma vez de "O Estado de S. Paulo. O processo está nas mãos do juiz Ricardo Lewandowski, nomeado ainda na gestão de Lula da Silva..O esclarecimento do tema é considerado fundamental porque Bolsonaro pode ser acusado de ter imposto risco à saúde a pessoas em seu redor - desde a realização dos exames participou em manifestações e aglomerações, tossiu em público e cumprimentou dezenas de apoiantes - e de um eventual crime de responsabilidade que, em última análise, poderia levar à abertura de processo de impeachment no Congresso Nacional..Bolsonaro referiu-se ao tema a 26 de março. "Já pensou que prato feito para a imprensa se eu tivesse infectado? Não estou. É a minha palavra. A minha palavra vale mais do que um pedaço de papel"..Na ocasião, o vice-presidente da República Hamilton Mourão pediu que se confiasse na palavra do presidente: "Seria o pior dos mundos o presidente chegar e declarar que testou e deu negativo e depois aparecer que deu positivo"..Mais tarde, em entrevista à rádio Guaíba, o chefe de estado disse que "talvez" tenha contraído o vírus. "Eu talvez já tenha pegado esse vírus no passado. Talvez, talvez. E nem senti".."O vídeo devastador".Além do cartão corporativo e do teste ao novo coronavírus, o governo resistiu a mostrar a íntegra de um vídeo de uma reunião ministerial, dos finais de abril, considerado por Sérgio Moro a principal prova de que o ex-ministro da justiça foi pressionado por Bolsonaro a mudar o comando da polícia federal. Foi intimado a mostrá-lo..Acusado de corrupção passiva privilegiada, obstrução de justiça e advocacia administrativa na sequência das declarações de Moro à polícia, nesse vídeo está registada uma suposta ameaça do presidente de demitir o ex-juiz da Lava-Jato caso ele não concordasse com a substituição do delegado Maurício Valeixo.."Querem f... a minha família", disse ele no encontro ministerial. Na sequência, ordena a alteração na hierarquia policial de forma a "proteger familiares"..Os primeiros relatos a propósito das reações dos investigadores à prova exibida nesta terça-feira falam em "vídeo devastador" para Bolsonaro..Bolsonaro queria retirar Valeixo e colocar à frente da polícia o amigo da família Alexandre Ramagem, cuja nomeação foi suspensa pelo STF, gerando a indicação de Ronaldo de Souza, o braço direito de Ramagem. E o primeiro ato de Souza foi, precisamente, mudar o comando da superintendência do Rio..Por quê tanto interesse em ter alguém da sua confiança e o que tem a esconder na cidade, perguntou a imprensa? "O Rio é o meu estado", reagiu Bolsonaro..É também lá, entretanto, que correm os processos relativos à organização criminosa em torno do senador Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente. .E o de Marielle Franco que vem constrangendo a família Bolsonaro, embora não envolva nenhum dos seus elementos. O presidente acha que esse processo está a ser instrumentalizado contra si por Wilson Witzel, o governador do Rio com quem se incompatibilizou nos últimos meses..Já sobre o tal conteúdo "devastador" do vídeo, Bolsonaro resumiu tudo a "fofocas"..Mas não foi só por isso que a AGU fez os possíveis para impedir que a íntegra do vídeo fosse constituída como prova: na reunião, conforme relatos de intervenientes, são ainda citados acordos com o "centrão", o grupo de partidos políticos que trocam o seu apoio parlamentar por cargos na esfera pública, uma prática que Bolsonaro prometeu combater caso eleito, enquanto a China, o maior parceiro comercial do país, é criticada, assim como são atacados os membros do STF, chamados de "onze filhos da puta" pelo ministro da educação Abraham Weintraub, entre outros focos de mal-estar.