Incêndio em Sintra. "Que maldade tão grande que fizeram à nossa serra"
De três em três minutos, passa um avião por cima do casario da Charneca do Guincho - e agora o povo todo da aldeia juntou-se no cimo de um monte para ver o fogo ser apagado. "O pior já passou", diz João Pedro Gonçalves, 50, que só se apercebeu do inferno quando ouviu as sirenes dos carros de bombeiros que passavam lá ao fundo na estrada. "Pouco passava das onze da noite." O incêndio começou às 22.50 de sábado.
À uma da tarde de domingo estavam cinco meios aéreos a dar conta da frente de fogo que desceu a serra de Sintra pelo alto da Peninha e varreu o sudoeste do Parque Natural, no concelho de Cascais. Há ainda 690 homens e 206 viaturas no terreno, mas já não se vê fumo - todos os operacionais que falaram com o DN dizem que o fogo está dominado.
O amanhecer trouxe alívio, mas aqui a noite meteu medo. Às duas da manhã veio a GNR dar ordem de evacuação. Às quatro e meia as labaredas aproximaram-se da aldeia. "Mas os bombeiros foram uns bravos, formaram um cordão a rodear a povoação e não deixaram o fogo aproximar-se das casas", conta João Pedro e à sua volta toda a gente concorda.
Foi dessa hora até ao raiar do sol que a coisa esteve pior. "Eles bem lutavam, coitados, mas o fogo vinha muito forte e começámos a temer que ele acabasse por ganhar terreno", conta Beatriz Pires, 47, que como toda a gente aqui não pregou olho a noite inteira. Domingo nasceu e o vento amainou. Aviões e helicópteros puderam levantar voo. Às 11.30 a estrada para a Charneca voltou a ser aberta. "Esta já passou. Vamos ver quando vem a próxima."
Há 18 anos estes mesmos terrenos arderam - e a memória desse incêndio está na cabeça do povo inteiro. "Foi muito pior nessa altura, as chamas entraram no centro da aldeia e consumiram o Pinhal do Muchacho", conta Ana Rocha, 75, que acabou de voltar a casa depois de ter sido retirada. "Mas nessa altura não veio cá ninguém tirar-nos das nossas casas."
Não é que Dona Ana condene a GNR por ir bater à sua porta e ordenar-lhe a saída forçada. Mas ficou com o coração nas mãos - e só o deixou voltar ao peito há uns minutos, quando pôde voltar à Charneca e ver que a vida que construiu permanecia intacta. Charneca foi uma das quatro aldeias evacuadas esta noite, mas não quer dizer que tenha saído toda a gente. Os novos ficaram. Velhos, acamados e crianças fugiram.
A Charneca do Guincho está habituada ao fogo, mas nunca ninguém pensou que às tantas da noite deflagrasse um incêndio num dos montes mais despidos da serra. Ventos de 100 quilómetros fizeram as labaredas avançar rápidas, mas os charnequenses estavam mais preparados do que nunca.
"A câmara tinha limpado os terrenos, os privados tinham limpado os terrenos, não havia estradas com mato até ao alcatrão", e João Pedro Gonçalves é todo desconsolo. "Não há explicação para isto que não a maldade." Mas depois enche o peito agradecido: "A verdade é que nunca tínhamos visto um dispositivo de combate tão rápido. Parecia que estava tudo preparado para o pior. Felizmente, o pior não aconteceu."
Depois de levar a sogra para porto seguro, João fez o que todos os outros fizeram. Estacionou o carro com a frente apontada à saída da povoação, não fosse o diabo tecê-las. Preparou mangueiras, fechou portas e janelas, e esperou. No centro da aldeia, abriram-se as portas da União Recreativa, para que os que vivem nos limites da povoação pudessem descansar nos colchões onde se costuma praticar ginástica. O bar ficou aberto a noite toda, e quase só serviu água. Com a água vinha sempre a mesma frase, e depois dessa frase o silêncio: "Que maldade tão grande que fizeram à nossa serra."
A Charneca fica no extremo sul do Parque Natural Sintra-Cascais, entre as dunas do Guincho, o monte da Peninha e o da Pedra Amarela - tudo o que ardeu esta noite. Tem 675 habitantes e duas centenas de casas brancas, as mais das quais com jardins, muitas delas com piscinas. Perto há um hipódromo, muito frequentado pelos miúdos da povoação. Tratam quase sempre os pais por você.
Este é um cenário significativamente diferente dos que estamos habituados a ver nos incêndios no interior do país, em áreas mais abandonadas e deprimidas: perto de Lisboa, quase toda a gente aqui trabalha na capital ou em Cascais.
"Há duas ou três gerações esta era terra de pequena agricultura e pesca, hoje é uma aldeia de betinhos", diz João Paulo Gonçalves. "Quem vive aqui das três uma: ou trabalha em Lisboa, ou trabalha em Cascais, ou não trabalha de todo. Mas, ao contrário das famílias de Cascais que tendem a isolar-se em refúgios privados, o sentido de comunidade é aqui muito forte."
Quando acontece uma tragédia a alguém, é como se acontecesse a toda a gente, garante o homem. "Os terrenos dos betos também ardem, e não nos custa menos a nós ver perder a vida que construímos." Na União Recreativa, construída há 50 anos exclusivamente com contributos dos habitantes da Charneca, o povo ia-se juntando ao longo da manhã para avaliar o que estava perdido. E foi aí que João Paulo tomou a palavra.
"Aqueles homens podem não ter conseguido travar o fogo todo, mas lutaram que se desunharam para que ele não chegasse às nossas casas", anunciou para a multidão que ali se tinha juntado. "Temos de fazer alguma coisa, os homens devem estar exaustos."
A grande festa da Charneca é o São Martinho, que se comemora a 11 de novembro, e a arrecadação da União Recreativa já está carregada de águas e sumos. "Para a festa logo se vê, agora vamos é arranjar um carro e levar isto aos bombeiros." E se lhes fizéssemos umas bifanas, pergunta uma mulher. João Paulo liga para a responsável do bar do clube, que venha abrir a cozinha que precisam de pôr as frigideiras ao lume.
Então o homem anuncia que vai a casa buscar carne, tem lá uns bons quilos congelados. Vários vizinhos prontificam-se a imitá-lo e João pede a alguém para ir comprar pão a Cascais, agora que a estrada já está aberta. Na Charneca do Guincho, até que o fogo esteja em rescaldo, ninguém passará fome.