Neste sábado inicia-se, por fim, o procedimento para a investidura do governo resultante das eleições de 10 de novembro. A partir das 09.00 de Madrid, Pedro Sánchez vai dirigir-se aos deputados e falar sobre o programa do governo acordado entre o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e o Unidas Podemos de Pablo Iglesias. O debate vai estender-se aos deputados e, no domingo, realiza-se a primeira votação. Ninguém acredita que a oposição mude de ideias, pelo que, conforme dita a lei, uma segunda votação decorre 48 horas depois - e aí já não é necessária maioria absoluta, basta haver mais sins do que nãos. Um marco na história da democracia espanhola: a confirmar-se, será o primeiro governo de coligação..Mas por muito que custe ao centro e à direita espanhola uma coligação do centro-esquerda com uma formação de esquerda, não vai ser esse o ponto, antes o acordo gizado entre o PSOE e a Esquerda Republicana Catalã (ERC), para que esta viabilize o executivo. Tal como no Reino Unido o debate político ficou contaminado pelo Brexit - e vai continuar -, em Espanha é o movimento independentista catalão a condicionar a agenda e a servir de alimento aos nacionalismos..Na quinta-feira, o conselho nacional da ERC deu luz verde para que os seus 13 deputados em Madrid se abstenham nas votações para a investidura do governo. Foi o culminar de um processo de mais de um mês de reuniões oficiais com os socialistas, mas que já tinha começado nos dias posteriores ao pré-acordo de governo rubricado em meados de novembro entre PSOE e Unidas Podemos..Consulta aos catalães.O acordo entre ERC e PSOE tem dois pontos: o reconhecimento de que existe um conflito político e que é nesse campo que tem de ser resolvido e, em consequência, a criação de uma "mesa bilateral de diálogo" para a resolução do mesmo. "Partimos do reconhecimento de que existe um conflito de natureza política sobre o futuro político da Catalunha. Como qualquer conflito desta natureza, só pode ser resolvido através de circuitos democráticos, através do diálogo, negociação e acordo, ultrapassando a judicialização do mesmo", lê-se..Em concreto, o documento prevê que o governo central e o governo regional - a Generalitat - estabeleçam reuniões de "diálogo aberto" no qual todas as posições serão alvo de debate. Prevê também que a denominada mesa inicie atividade até 15 dias após a formação do governo. Mas o mais controverso está guardado para o fim: "As medidas de concretização dos acordos serão sujeitas, se for caso disso, à validação democrática através da consulta aos cidadãos da Catalunha, de acordo com os mecanismos previstos ou que possam ser previstos no âmbito do sistema jurídico-político.".Um referendo de autodeterminação? Não é isso que está escrito, apressaram-se os socialistas a comentar, perante as reações de indignação de quem não admite tal cenário, até porque não está previsto na Constituição. No entanto, o texto é ambíguo o suficiente para permitir as mais variadas leituras. Por exemplo, o presidente do Partido Popular, Pablo Casado, disse que o acordo "liquida a soberania nacional com a consulta independentista, a igualdade entre espanhóis com a [criação da] mesa bilateral e a legalidade ao falar de ultrapassar a judicialização de um falso conflito político".."Outro míssil contra a ordem constitucional", reagiu por sua vez a porta-voz do Ciudadanos no Parlamento, Inés Arrimadas. A provável sucessora de Albert Rivera no partido fundado em Barcelona apelou aos chamados barões socialistas para se rebelarem. Mas o mais que conseguiu foi a reação do presidente da comunidade de Castela-Mancha. Em comunicado, o socialista Emiliano García-Page afirmou que, se o executivo iniciar uma relação bilateral com um governo autonómico, terá de estender a medida aos restantes. Lembrou ainda que a lei impede consultas a cidadãos de um só território..O El Mundo, em editorial, considera o acordo, arquitetado "na opacidade e no secretismo", um "grave erro de Sánchez em aceitar os votos dos independentistas para permanecer amarrado ao poder". E conclui: "Investidura alguma justifica humilhar a Espanha.".Já o colunista Xavier Vidal-Folch, do El País, releva a legalidade do acordo: "Não vai além do quadro legal constitucional e estatutário, mas estende-se a todos os seus cantos para tirar proveito de sua elasticidade." O editorial do diário, porém, põe a tónica na necessidade de Sánchez fundamentar o que não está escrito no acordo. "Mais do que constitucional ou inconstitucional, se o candidato socialista não oferecer mais explicações sobre o conteúdo dessas decisões, a fórmula acordada com a ERC é, simplesmente, perigosa.".O acordo foi alcançado quando, em paralelo, o Tribunal de Justiça da União Europeia concluiu que o líder da ERC, Oriol Junqueras, deveria gozar de imunidade parlamentar desde que foi eleito para o Parlamento Europeu. Junqueras, condenado a 13 anos de prisão na sequência do referendo ilegal de outubro de 2017, já pediu a nulidade da sentença..Já o presidente do governo catalão, Quim Torra, do partido de Carles Puigdemont (Junts per Catalunya), menosprezou o acordo, que diz ser entre partidos e não entre governos. Torra, que enfrenta a possibilidade de ser destituído do cargo - foi condenado a ano e meio de inabilitação por ter recusado retirar símbolos separatistas de edifícios públicos -, não dá sinais de compromisso, ao afirmar que estabelece como condições o "exercício de autodeterminação, o fim da repressão e amnistia"..Acordos e mais acordos.Em abril de 2019, o PSOE elegera 123 deputados e o Unidas Podemos 42. Juntos não alcançaram uma maioria parlamentar (176), embora já então a ERC se ter disponibilizado para viabilizar um executivo com essa composição. Foi preciso perder vários meses, três deputados e mais de 750 mil eleitores nas eleições de novembro para Pedro Sánchez e os dirigentes socialistas deixarem as desconfianças para trás e avançarem com as negociações com a formação liderada por Pablo Iglesias..Só que a relação de forças parlamentar alterou-se, não só com a perda de ambos os partidos (Podemos agora tem menos sete parlamentares) mas também da ERC, com menos dois deputados, o que obrigou o PSOE a uma multiplicação de negociações com partidos com menor representação. Em troca do sim dos seis deputados do Partido Nacionalista Basco (PNV), os socialistas comprometeram-se a negociar um novo estatuto autonómico basco e a cumprir o atual em matéria de transferência de competências. No campo desportivo e cultural, o País Basco poderá fazer-se representar internacionalmente. Ainda nessa região, o EH Bildu anunciou que os cinco deputados irão abster-se. Para o seu líder, Arnaldo Otegi, ex-militante da ETA, a nova legislatura será marcada pela "plurinacionalidade e pelo direito a decidir"..O PSOE teve ainda de firmar acordos com os deputados do Compromís (Valência), da Nueva Canarias (Canárias) e da Teruel Existe (Aragão). O Bloco Nacionalista Galego (BNG) foi o último a chegar a um compromisso com o partido de Sánchez. No acordo de 13 pontos alguns estão diretamente relacionados com Portugal. Na promessa do governo central de melhorar as infraestruturas, fica contemplada a modernização da rede ferroviária galega, o que inclui a ligação à fronteira portuguesa. No ponto relativo à língua galega, além da "normalização do uso do galego" na administração e nos meios de comunicação públicos, prevê-se "facilitar a execução do Congresso e do Parlamento galego para a receção na Galiza das rádios e televisões portuguesas". Em troca do sim do deputado do BNG, o PSOE compromete-se ainda a reforçar o autogoverno galego e a garantir que "qualquer modificação da estrutura territorial do Estado" não deixará a Galiza com um estatuto diferente do País Basco nem da Catalunha..Medidas emblemáticas.A "Coligação progressista - um novo acordo para Espanha" foi assinado entre o PSOE e o Unidas Podemos no dia 30 de dezembro. Eis algumas medidas e alguns compromissos:.Diálogo com a Catalunha Os dois partidos comprometem-se em fazer face ao conflito político na Catalunha através do "diálogo e da negociação"..Impostos aos mais ricos aumentam O imposto sobre os rendimentos vai pesar para quem mais fatura. O aumento dá-se a partir de 130 mil euros anuais e a tributação é ainda mais penalizadora a partir dos 300 mil euros. O IRC mínimo passa para 15%, valor que passa para 18% para as empresas financeiras e de combustíveis..Religião na escola deixa de contar A disciplina de Religião continua como opcional, mas a sua nota deixa de contar para a média no acesso ao ensino superior e, caso o aluno não se inscreva, não terá uma disciplina alternativa..Fim aos prazos de investigação Socialistas e podemistas vão revogar o artigo 324.º do Código do Processo Penal. As associações de juízes e magistrados manifestaram-se em uníssono contra esse artigo, aprovado pelo governo de Mariano Rajoy, que impunha seis meses para as investigações judiciais comuns e 36 meses para as complexas, caso contrário seriam arquivadas..Habitação acessível Não esquecendo a base de revolta popular do qual nasceu o Podemos, o acordo visa também um programa de habitação. Na construção, ao apostar num parque público de habitação, mas também na reabilitação, ao ajudar os proprietários a realizar obras. Os inquilinos também ganham novas garantias, pois passam a ser estabelecidos limites nas rendas..Atualizado às 11.50.