O show não vai ser o mesmo. O relâmpago apagou-se (dizem que se tentou mudar para os campos de futebol) e aquele trovão de bruaás nas bancadas que o acompanhava de cada vez que surgia a iluminar a pista de atletismo vai ter de encontrar outra referência. No final de setembro de 2019 (de 28 até 6 de outubro), os Mundiais de atletismo no Qatar vão ser a primeira grande competição global pós-Usain Bolt, o jamaicano que revolucionou a velocidade ao longo de quase uma década e se tornou uma das mais populares figuras do desporto mundial..Nos Mundiais de Londres, em 2017, Bolt despediu-se sem coroa. Conseguiu apenas a medalha de bronze nos 100 metros, afastado do ponto mais alto do pódio que foi o seu habitat natural desde que em 2008 irrompeu como um... relâmpago pela pista olímpica do Ninho de Pássaro, nos Jogos de Pequim. Bolt reescreveu os livros dos recordes nos 100 e nos 200 metros, deixou-os aparentemente inacessíveis a toda uma geração nos anos mais próximos e, sobretudo, deu ao atletismo uma nova superestrela para celebrar..Em Doha, no Qatar, vai ser um atletismo órfão dessa figura planetária aquele que se vai reunir para os próximos Mundiais, à procura de outros ídolos. Alguns já se mostraram, outros certamente irão surgir..A estreia do português Pichardo.Para Portugal, a grande expectativa recai na possível estreia de Pedro Pablo Pichardo como atleta português numa grande competição. O saltador, que foi vice-campeão mundial do triplo salto em 2013 e em 2015, chegou de Cuba para representar o Benfica em abril de 2017 e obteve naturalidade portuguesa em dezembro desse ano. A Federação Internacional de Atletismo (IAAF), no entanto, só o deixará competir sob bandeira lusa a partir de 1 de agosto de 2019, às portas do campeonato do mundo..Um de apenas cinco homens a ter ultrapassado a fasquia dos 18 metros na história do triplo salto, Pichardo já estabeleceu entretanto um novo recorde português na disciplina, colocando-o próximo dessa "mágica" marca de referência: saltou 17,95 metros, em abril deste ano, precisamente em Doha, no Qatar, onde será naturalmente um forte candidato ao título mundial caso chegue em boa forma a setembro..A chegada de Pichardo a Portugal fez abrir também uma rivalidade entre o atleta nascido em Cuba e o último campeão olímpico (em 2008) português, Nelson Évora, a grande referência do triplo salto nacional na última década. Aos 34 anos (terá 35 nos próximos Mundiais), Évora vive um segundo fôlego na carreira que lhe permitiu subir ao pódio nos últimos Mundiais de Londres, onde só perdeu para os norte-americanos Christian Taylor e Will Claye. E terá certamente motivação redobrada para voltar a lutar por uma medalha em Doha, depois de ter visto Pichardo "roubar-lhe" o recorde português..Além de tentar beneficiar deste particular duelo no triplo salto, Portugal olha também com natural expectativa para os 50 km marcha femininos, onde Inês Henriques defenderá o seu título pioneiro numa disciplina que se estreou em Londres, em 2017, com a atleta de Rio Maior a sagrar-se a primeira campeã do mundo da história. A prova começa a atrair mais mulheres e o recorde mundial de Inês Henriques foi entretanto batido, em maio deste ano, pela chinesa Liang Rui, mas a portuguesa continua a ter três das seis melhores marcas da disciplina e será, naturalmente, uma das favoritas..Além desse trio Pichardo-Évora-Inês, torna-se difícil vislumbrar no horizonte mais alguma possibilidade de um atleta português se intrometer nos pódios entre as grandes figuras do atletismo mundial..Maratona à meia-noite.Os Mundiais de Doha marcarão mais uma etapa da afirmação do Qatar como palco de grandes eventos desportivos internacionais, cujo ponto alto está agendado para 2022, com a realização do Campeonato do Mundo de futebol. Nos último anos, o emirado já recebeu competições como os Mundiais de andebol, de ciclismo e de ginástica artística. O de atletismo terá lugar no renovado Khalifa International Stadium, um dos que acolherão também o campeonato de futebol, e será marcado por algumas inovações..Para minimizar o impacto das altas temperaturas no golfo Pérsico, o tradicional calendário de provas sofreu alterações importantes, destacando-se desde logo o novo horário das maratonas, que terão o tiro de partida à meia-noite local (mais três horas do que em Portugal continental). Também as provas de marcha serão disputadas durante a noite, com início marcado para as 23.30. Entre as novidades da competição conta-se ainda uma nova estafeta: a de 4x400 metros para equipas mistas..Se nas ruas de Doha as provas longas desfilarão à noite para fintar o calor, dentro do recinto atletas e espectadores beneficiarão de um inovador sistema de refrigeração instalado no Khalifa International Stadium, capaz de manter a temperatura "em condições ideais, entre os 24 e os 26 graus", segundo os organizadores..Nomes para decorar.Ora, sem Bolt, que grandes figuras terá então o atletismo para celebrar em Doha? Entre alguns campeões de 2017 e outras promessas reveladas entretanto, há umas boas mãos-cheias de candidatos. Mas também algumas dúvidas, como as que recaem sobre aquele que se projetava como o mais forte nome para suceder ao jamaicano como o grande fenómeno das pistas de atletismo: Wayde van Niekerk..O sul-africano - que bateu, nos Jogos do Rio, o mítico recorde dos 400 metros que durou 24 anos na posse de Michael Johnson, aproximando-se da barreira dos 43 segundos (43,02) - viu a carreira em perigo quando sofreu uma lesão nos ligamentos do joelho durante um jogo de râguebi para celebridades, em outubro de 2017 e o seu regresso à competição encerra uma das fortes expectativas para o próximo ano..Mas há mais. Desde logo Eliud Kipchoge, o queniano que em 2018 aproximou um pouco mais o recorde do mundo da maratona da barreira das duas horas (2:01:39). Ou o possível regresso de Mo Farah aos 5000 e aos 10 000 metros, ele que tem tentado ultimamente converter-se em maratonista. Ou Armand Duplantis, adolescente sueco que aos 19 anos já só vê o lendário Sergey Bubka mais alto do que ele no salto com vara. Ou Jakob Ingebrigtsen, norueguês que fez história nos últimos Europeus ao ganhar o ouro nos 1500 e nos 5000 metros, com apenas 17 anos. Ou ainda Abderrahman Samba, grande sensação do atletismo do Qatar e o segundo homem de sempre a correr os 400 metros barreiras abaixo dos 47 segundos (46.98)..Em femininos, luzes sobre a queniana Beatrice Chepkoech, nova recordista mundial dos 3000 metros obstáculos, a sensacional venezuelana Yulimar Rojas, de 23 anos, campeã em título no triplo salto, ou a belga Nafissatou Thiam, de apenas 22 anos mas já dominadora do heptatlo (ouro nos Jogos de 2016, Mundiais de 2017 e Europeus de 2018). E talvez Sydney McLaughlin, norte-americana de 19 anos que neste ano entrou para o top 10 da história dos 400 metros barreiras. Nomes para ir decorando até setembro, quando subirá o pano dos Mundiais de Doha.