Os políticos vão voltar a olhar para o boneco

Cada cinco minutos de 'Contra Poder' implica muitas horas de trabalho. As vozes feitas por quatro atores, os bonecos de Pablo Bach manipulados por dez pessoas, os textos de três autores são trabalhos individuais. A <strong>Notícias TV</strong> foi ver como se faz a sátira que chegou no início desta semana à SIC Notícias e à SIC Radical.
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Numa altura em que os portugueses estão cheios de incertezas, a produtora Mandala uniu-se à SIC Notícias e à SIC Radical para lançar uma proposta aos espectadores dos canais de Carnaxide: rirem-se com a classe política e ajudarem a que esta entenda melhor o sentimento do povo português. É este o objetivo de Contrapoder, que se estreou na terça-feira com a garantia de ser sempre implacavelmente do contra. E isto não acontece apenas quando os sketches chegam ao pequeno ecrã. Existem momentos ao longo da sua conceção que também "giram ao contrário".

A Notícias TV foi saber quem se esconde, literalmente e não só, por detrás de Ai Jesus (Jorge Jesus), Maquiavel Relvas (Miguel Relvas), Cacos Coelho (Pedro Passos Coelho), Vítor Rapar (Vítor Gaspar), Brasa de Sousa (Clara de Sousa), Não Dá Cavaco (Cavaco Silva), Asseguro (António Seguro) e Lengalenga Merkel (Angela Merkel), personagens a que se juntarão, mais tarde, outras tantas, como Paulo Futre ou Marcelo Rebelo de Sousa, e que ocuparão a grelha diária da SIC Notícias e da SIC Radical pelo menos durante os próximos três meses, garantiu António José Teixeira, diretor do canal de informação de Carnaxide.

O verdadeiro trabalho de equipa

"No Contrapoder, os textos [da autoria de Frederico Pombares, Henrique Dias e Roberto Pereira, a mesma equipa que escreve a série Hotel 5 Estrelas] são gravados primeiro e a manipulação é feita por cima. Nas dobragens normais, que não as do Contrapoder, é o inverso: as vozes têm de esperar para serem feitas por cima das imagens", começa por explicar Mila Belo. "Isso permite-nos ter uma liberdade única de podermos interpretar o texto da forma que quisermos", prossegue a atriz, a única que inclui a equipa vocal do programa e que, por isso, tem a seu cargo todas as imitações femininas.

Foi isto que aconteceu quando o boneco que representa o ministro das Finanças participou, há uma semana, no Boa Tarde. Apesar de este programa das tardes da SIC ser transmitido em direto, a presença da personagem Vítor Rapar no espaço apresentado por Conceição Lino teve de ser gravado e emitido nesse mesmo dia como um falso direto. "Tal como com os diários do Contrapoder, também neste caso a voz foi gravada previamente", explicou fonte oficial da Mandala à nossa revista. "O que se passa aqui no Boa Tarde é basicamente o que acontece com o programa: os manipuladores dos bonecos animam os diálogos a posteriori. Nada é feito em simultâneo", frisa. "Até porque cada boneco pesa em média quatro quilos e para os atores que lhes dão vida é fisicamente complicado estarem mais de três minutos de braços no ar a manipularem as marionetas. Geralmente eles animam uma frase e descansam. Depois animam outra e voltam a descansar. E por aí em diante", justifica.

Nessa sexta-feira, Vítor Rapar foi manipulado por três profissionais, tal como todos os outros bonecos do programa. "Um mexe um braço e a cabeça, outro mexe o outro braço e existe ainda um terceiro para animar a boca e os olhos. Aqui, como a mesa onde ele se esconde é muito pequena, optamos por ficar apenas com dois animadores. Ou seja, o Vítor Rapar não vai mexer a boca e os olhos", ri-se a produtora.

E se quatro quilos distribuídos pelos braços de três homens é cansativo, por dois torna-se quase insustentável. Os escolhidos ensaiaram, sem paragens e ao longo de cinco (longos) minutos, o diálogo que Rapar se propôs ter com Conceição Lino... ensaio esse que não foi gravado! "Não podemos voltar a fazer isto em dois takes?", questiona um dos manipuladores. "Ele está exausto", sublinha a apresentadora. "Pelo menos deixem-no descansar uns minutos. Depois, ou vai ou racha", acrescenta.

Dez minutos mais tarde, os profissionais voltam a sentar-se no chão, atrás de uma bancada, levantam os braços... e gravam novamente o sketch. De seguida. "Fui a única a conseguir derrubar o ministro", brinca Conceição Lino. "Agora chamem uma ambulância", prossegue a apresentadora, a olhar para os braços dos manipuladores. "Tremem que nem varas verdes", aponta.

O tempo que os manipuladores aguentam a mexer um boneco é a grande exigência deste trabalho. Rui Pimpão, coordenador da equipa de vozes e também ator de marionetas, conta que é esta dificuldade que faz que o programa tenha cerca de dez manipuladores ao serviço. "É um trabalho de equipa. Ao todo somos quatro principais, a que se juntam outros tantos. Somos cerca de uma dezena no total", avança, para depois explicar que nunca se esquecem de que "uma marioneta é um boneco mas também uma imitação de uma pessoa real". "Isto torna-se mais complicado na medida em que temos três profissionais a manipular a mesma personagem e a tentar apanhar os tiques das personalidades que os bonecos representam", aponta Pimpão. "É um trabalho muito idêntico ao das vozes, para o qual também é preciso muito estudo. Dou o exemplo do Rapar: é preciso que tenha piada sendo física e vocalmente lento e isso dá mais trabalho a interpretar," acusa.

Mila Belo, a única voz feminina da equipa de quatro imitadores, confessa que no seu caso o mais complicado são "as vozes mais normais", que não têm um tique imediatamente percetível. Ainda assim, admite que imitar "não é difícil para quem é versátil ao nível das cordas vocais", o que não implica a inexistência de "muito trabalho de casa". "Eu passei, por exemplo, horas e horas a ver e a ouvir a Clara de Sousa a apresentar o Jornal das Noite e outras tantas horas a vê-la falar normalmente sem ser como pivô. São duas posturas completamente diferentes", refere Mila Belo.

Já João Canto e Castro, que também anda nesta vida de "contra" desde que, em 1996, a RTP1 estreou o Contra-Informação, diz que já deve ter feito "para cima de 60 vozes". "Destes novos que vou fazer agora tenho o Medina Carreira, o Cavaco Silva... Cada um de nós tem uma personagem específica, não variamos. É um trabalho para o qual é preciso ter ouvido, é preciso treinar as cordas vocais, mas é um dom que nasce com a pessoa: o saber ouvir e o saber transmitir. Nós somos papagaios. Encarnamos o boneco, mas encarnamos também a figura de carne e osso", conta o profissional, que já "na escola gostava de imitar os professores". "Estes cinco minutos diários de programa implicam cerca de uma hora de trabalho. Já chegar à imitação de uma nova voz depende dessa mesma voz, das suas características. Pode demorar cinco, seis dias, ou mais", diz.

Apesar do trabalho de pesquisa obrigatório e de apenas três dias em antena, este novo Contrapoder também já se faz de improviso. "O vídeo do Maquiavel Relvas foi feito de forma muito rápida", recorda Rui Pimpão, que dá voz ao boneco do ministro adjunto e dos Assuntos Parlamentares. "Estávamos numa gravação no Mercado de Alvalade, como o Vítor Rapar, quando soube da situação do Relvas [a ser vaiado na conferência do 20.º aniversário da TVI, no ISCTE, em Lisboa] e achei que era importante pormos o boneco a cantar Grândola, Vila Morena. Foi feito no momento, quase ao segundo", lembra o coordenador.

"Tenho pena de que o 'Contrapoder' não seja emitido pela SIC"

"Este formato encaixa na perfeição na grelha da SIC Notícias e foi isso que pensámos logo nas primeiras conversas com a Mandala", diz António José Teixeira à nossa revista. A aposta prende-se com o humor ser "uma componente muito importante da própria informação". "É um outro olhar sobre a realidade, às vezes até mais inteligente. Obviamente que com outras preocupações, mas acho que para lermos a realidade precisamos do traço grosso dos humoristas. Sei que nos tempos que correm isto parece mais evidente, mas eu diria que o humor faz sempre falta para podermos pensar", prossegue o diretor da SIC Notícias.

"Começamos com três meses de Contrapoder. É um período inicial, mas a nossa vontade é que seja um formato duradouro e acredito que vamos conseguir criar condições para que isso aconteça", adianta António José Teixeira.

Quem gostava de ter o Contrapoder na antena da SIC generalista é Clara de Sousa, que viu na terça-feira a "sua" Brasa de Sousa pela primeira vez. "Tenho pena de que não seja emitido pela SIC, porque acho importante que esta descompressão da sátira social e política por parte dos bonecos chegasse a mais pessoas", enfatiza a pivô. "Fiquei contente com esta honra de ter um boneco à minha semelhança, mas surpreendida quando me disseram porque sempre achei que em termos de imagem e de voz não era muito caricaturável. A não ser o óbvio dos lábios. Acho que mesmo assim a Brasa de Sousa tem um ar mais duro do que eu, mesmo nos meus dias mais duros. Agora espero venham mais pivôs, que um colega se junte a mim rapidamente", ri-se a jornalista, para quem o trabalho de Pablo Bach, autor de todos os bonecos do programa, "é notável".

Habituada a lidar com a classe política portuguesa, Clara de Sousa diz não acreditar que os políticos nacionais não se "riam com estes bonecos". "Em nenhum momento a Mandala se torna ofensiva no humor que faz e isso permite-nos rir de nós mesmos. A produtora não vai lá com a espada, vai com o alfinete. Pica-nos e nós saltamos e, neste aspeto, há que ter poder de encaixe. Muitos políticos devem rir-se dos seus bonecos. Eu não acredito que Miguel Relvas não se tenha rido. Eu, se fosse ele, tinha-me desmanchado", confessa a pivô.

A forma como os políticos caricaturados olham para esta sátira é, para já, uma incógnita até para a produtora Mafalda Mendes de Almeida. "Não temos aqui [na apresentação do Contrapoder à comunicação social, em Lisboa] nenhum membro do governo, apesar de os termos convidado. E não íamos cantar Grândola, Vila Morena [risos]. Será que é desta que nos vão levar a sério? Eu acho que sim, que isto é sintomático de que, agora, vamos entrar num ciclo novo em que vão levar mais a sério aquilo que dizemos", termina a diretora, que escolheu Filipe Portela para realizar o formato. "Foi devido à insistência dele e à visão que teve que tudo isto aconteceu. Ele foi realizador do Contra, além disso, é escultor e grande parte do atelier de manutenção de bonecos [em Lisboa] é coordenado pelo Filipe, que domina completamente toda a técnica que envolve esta produção. Não é por acaso que ele é meu filho [risos]", atira Mafalda Mendes de Almeida.

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