Janelas partidas, portas encerradas, paredes com fissuras, com humidade e com vegetação e um gradeamento cá fora fazem parte da imagem que se retém de um edifício que é uma ruína e uma memória que assombra. E, porque uma desgraça não vem só, há dias ardeu, parcialmente. Aconteceu nas Caldas da Rainha. O edifício é um dos mais interessantes da arquitetura finissecular do século XIX em Portugal..Ninguém imagina o Parque das Caldas sem os Pavilhões, e inversamente, porque ambos foram concebidos, em simultâneo, a partir do início da administração do Hospital Real por parte de Rodrigo Maria Berquó, um aristocrata próximo do rei D. Carlos I e do Partido Progressista, com formação em engenharia e arquitetura e experiência profissional em estâncias termais. A poderosa imagética do conjunto arquitetónico e paisagístico, paredes-meias com o Hospital Termal Rainha D. Leonor (o mais antigo do mundo), tem resistido à falta de interesse anterior do Ministério da Saúde e aos desmandos por parte de quem presentemente gere este património, porque, neste caso, a Câmara Municipal não tem priorizado, com a devida urgência, a reabilitação arquitetónica, nem promovido a realização de usos adequados na área contígua do Parque..Recuando a 5 de novembro de 1888, Berquó chegou à então vila para assumir a direção hospitalar e desenvolver um plano de obras, tendo em vista fazer das Caldas da Rainha uma estância termal à escala europeia. Poucas horas depois de chegar de comboio e atravessar o eixo retilíneo de acesso ao Hospital Termal, presidiu à primeira reunião como presidente da Administração. O caminho da ambição ficou traçado: o Hospital Civil fora do centro da vila, o termalismo como atividade essencial, a ampliação do Hospital Termal, a construção de um Parque de saúde e lazer, bem como a construção de um grande edifício para área de alojamento hospitalar dos aquistas - o Hospital D. Carlos I, ou melhor, os Pavilhões do Parque. A construção de um novo hospital em pavilhões obedecia ao modelo higienista da época..À visão estratégica e ambiciosa de Berquó, respondeu a população local com pequenez, porque via nos futuros Pavilhões do Parque uma concorrência à oferta doméstica de quartos, sem atender ao facto de que o progresso a todos beneficia. A Imprensa local aplaudiu o projeto grandioso, mas apenas inicialmente - "Oxalá pois que nenhuma dificuldade imprevista venha embaraçar o engrandecimento do hospital das Caldas da Rainha, que mais uma vez o repetimos é desse engrandecimento que principalmente depende a riqueza vital desta terra." (O Caldense, 2 de abril de 1893). Porém, Rafael Bordalo Pinheiro fez uma campanha nauseosa contra o mentor do projeto, apelidando Berquó de "Pharaó das Caldas", "O Grão Pachá", "Mazalipatão"; "Supremo Arquiteto das Caldas"; "O Anjo do Extermínio", por exemplo..A morte súbita de Berquó, a 17 de março de 1896, deixou os Pavilhões do Parque à eterna condição de edifício inacabado. Apesar de servir o Estado e a comunidade local, com funções diversas durante todo o século XX, o edifício degradou-se, e nem a recente previsão de um hotel de 5 estrelas se concretizou - no verão de 2021, anunciou-se o início da obra para breve e a sua conclusão até ao verão de 2023. E, pasme-se, apesar das duras críticas a Berquó por parte de Bordalo, está previsto que o novo hotel se denomine "Montebelo Bordallo Pinheiro", só porque teria uma ligação à cerâmica, esquecendo-se o papel de Berquó e, sobretudo, a campanha contra si promovida pelo empresário e artista que, por sinal, caiu em falência poucos anos depois..A anunciada reabilitação dos Pavilhões do Parque insere-se no programa REVIVE - Reabilitação, Património e Turismo (2017): "o património imobiliário público constitui um componente relevante da identidade histórica, cultural e social do país, e um elemento rico e diferenciador para a atratividade das regiões e para o desenvolvimento do turismo". Porém, o projeto das Caldas parte de um programa inadequado, em termos da colocação das áreas de receção e de distribuição funcional..Este exemplo traz à colação os temas do património e da visão estratégica das cidades. Tanto num caso, como noutro, o papel das comunidades é essencial, desde logo na escolha dos seus representantes e, também, constituindo uma massa crítica, um conselho de cidade, uma parceria com os eleitos e com os técnicos..A pele dos Pavilhões do Parque é significativa e pode servir de metáfora. Pedra sobre pedra, o edifício ergueu-se e manteve-se durante um século e um quartel de anos à espera da intervenção definitiva. Este é um daqueles edifícios que, apesar de abandonados, parecem ter vida à espera para ser ali vivida, mas que não acontece por uma qualquer curva do destino. Uma cidade com uma inegável tradição cultural e com o microcosmo do seu núcleo mais antigo tão singular não deve desbaratar o seu património, antes deve integrá-lo na sua predestinação..O sonho de Rodrigo Berquó anda não foi cumprido. Quando isso acontecer, seguramente estamos na presença de um dos hotéis mais fascinantes do País, que, porém, precisa de um conceito de hotel temático, evocando a história da cidade, cujo centenário da elevação a esse estatuto se aproxima (2027), e, desejavelmente, com um traço de arquitetura com assinatura reconhecida e, de preferência, sem o epíteto de Bordalo..Um hotel temático oferece uma experiência para que os hóspedes se tornem os divulgadores e principais comunicadores da experiência. Se uma intervenção no património deve manter a memória coletiva, também deve potenciar a contemporaneidade criativa e o usufruto do edifício e da cidade..Nem que, agora, se recomece da estaca zero..Quando um património arde, ardemos todos nós. E talvez isso nos confira um empenho acrescido de vontade e de esperança coletiva. Do fogo, brota a luz..Pós-doutorado em Turismo.