Os Mirós estão de volta à casa de Serralves
Em 1974, quando Joan Miró expôs pela primeira vez no Grand Palais de Paris as suas cinco teles cremades - telas que tinha pintado e depois queimado no desejo de quase "assassinar" o quadro e de desafiar a própria arte - deu ordens para que duas delas fossem penduradas do teto, permitindo aos visitantes ver a frente e o verso. Quase cinco décadas depois, uma dessas telas não está pendurada, devido à sua fragilidade, mas está numa moldura especial colocada no centro do salão de entrada da Casa de Serralves. Através dos buracos queimados pelo pintor catalão, os visitantes podem "espreitar" a aranha de Louise Bourgeois nos jardins exteriores, que dessa forma acaba também por entrar na obra de Miró. Na parede oposta, o curador Robert Lubar Messeri optou por pendurar uma colagem que serve quase de espelho à tele cremade, onde múltiplas camadas de tinta e papel negros se abrem para revelar numa espécie de janela um fragmento de um mapa e de um pedaço de jornal.
A exposição Joan Miró. Signos e Figuração, que abre hoje ao público e fica patente até 6 de março de 2022, inclui todas as 85 obras da Coleção Miró, que ficou nas mãos do Estado português depois da nacionalização do antigo Banco Português de Negócios. As obras do artista catalão, que incluem pintura, escultura, desenhos e tapeçarias, foram cedidas pelo Estado ao Município do Porto por um período de 25 anos, que por sua vez as colocou em depósito na Fundação Serralves. No ano passado foram classificadas como de interesse nacional. Expostas pela primeira vez em 2016 neste mesmo espaço (depois também no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa, em Pádua e em Nápoles, de onde voltaram antes do primeiro confinamento causado pela pandemia), as obras regressam agora a uma Casa de Serralves que foi alvo da reabilitação da parte do arquiteto Siza Vieira, permitindo nomeadamente o acesso a pessoas com mobilidade reduzida.
Numa visita guiada aos jornalistas, horas antes da inauguração oficial pelo primeiro-ministro António Costa, pela ministra da Cultura, Graça Fonseca, e pelo presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, Messeri explicou que tem um "duplo mandato" com esta exposição: "primeiro mostrar a coleção inteira e depois mostrar esta casa e o trabalho de reabilitação magnífico de Siza Vieira". As obras surgem por isso expostas "como se as pessoas ainda vivessem nesta casa", exemplar único da arquitetura Art Déco, construída nos anos 30 do século XX.
As 85 obras abrangem um período de quase 60 anos, sendo a mais antiga de 1924 e a mais recente de 1981, dois anos antes da morte de Miró. Esta última está pintada num pedaço de papel, semelhante a uma carta -"nunca a tirei da moldura, mas quero ler o que está do outro lado", admite Messeri, que não diz qual é a sua obra favorita, mas admite que há uma que gostaria de poder levar para casa - só não revela não vá ela um dia desaparecer e acharem que foi ele.
"É uma coleção excecional, com algumas obras especialmente difíceis", diz o curador, professor de arte moderna no Institute of Fine Arts na Universidade de Nova Iorque e um dos maiores estudiosos da obra de Miró. "As pessoas tinham uma ideia do que era um Miró clássico, de como deveria parecer. E algum do seu trabalho é diferente. Em Serralves, podemos mostrar Miró em toda a sua complexidade", explicou o também administrador da Fundació Joan Miró em Barcelona.
Nesta exposição, Messeri não quis seguir uma ordem cronológica, mas temática. "O meu primeiro critério para esta coleção foi estético. Queria que o trabalho parecesse o mais bonito possível", explicou. Mas dentro do estético, foram surgindo temas: a linguagem de signos num quarto, o tratamento da figura noutro..."Esta sala não tem tema: o tema é a beleza", explicou no quarto à direita de quem entra na casa, que disse também ser "um espaço para contemplação". Expostas estão três obras dos anos 1930, 1940 e 1950 que mostram precisamente a forma como foi desenvolvendo essa sua linguagem.
Outra sala mostra a resposta de Miró aos acontecimentos políticos da época: a ascensão do fascismo nos anos 1930. São seis obras de uma série de 27 feitas em Masonite, um material que foi desenvolvido nos anos 1920. Um lado é muito áspero, o outro é mais suave. "O que Miró gostava era a qualidade agressiva da textura", explicou. Os seis quadros foram pintados entre meados de julho e meados de setembro de 1936, os primeiros meses da Guerra Civil espanhola. "Não têm nada a ver com a Guerra Civil em si, mas são extremamente agressivos", com pedaços de seios ou falos, "como se o próprio corpo e o que nos torna humanos estivesse a ser destruído", explicou o curador. Miró "distorce as figuras", que são "absolutamente horríveis", sendo que "todos os aspetos deste quadro estão feitos para parecerem feios e agressivos". Eram expressões de raiva com a situação política da época. "Suspeito que se Miró estivesse vivo hoje, estaria igualmente irritado, especialmente se vivesse nos EUA", desabafou Messeri.
No primeiro andar da Casa de Serralves, num pequeno quarto dentro de outro quarto onde estão expostas três colagem, esconde-se uma das novidades da exposição: um laboratório de conservação. Em duas grandes mesas estão duas das 33 tapeçarias, conhecidas como "sobreteixins" ("sobretecidos"), que Miró produziu em 1973. O desafio é encontrar uma forma de as expor, pendurando-as, sem ser recorrendo ao plexiglass.
Durante a exposição serão efetuados trabalhos de conservação nestas duas obras, num processo que poderá ser acompanhado pelos visitantes, que poderão também fazer perguntas aos conservadores. "A conservação é uma parte importante do nosso trabalho no museu", explicou Messeri, dizendo que a solução poderá passar por criar uma grelha de metal ou madeira onde seja possível pendurar a tapeçaria e as cordas que compõem o trabalho, onde também há espaço para sacos de farinha (o artista catalão alugou o espaço de uma antiga fábrica de farinha em Tarragona, no sul da Catalunha, para trabalhar) ou até uma vassoura. "Dizemos que são tapeçarias, mas são na realidade esculturas", disse o curador, lembrando que Miró usou os mais belos materiais, mas também os mais pobres -- num dos quadros da exposição é visível uma máscara de palhaço, que terá sido da filha. "Estava sempre a trabalhar com os materiais que estavam à sua volta."
Miró trabalhou nos seus sobreteixins com o tecelão Josep Royo, que apesar de só ter 25 anos era já um mestre. "Gostava de poder mostrar a parte de trás das tapeçarias. Os nós são só por si uma obra de arte", disse o curador. As primeiras tapeçarias foram feitas em lã, mas depois Miró usou todo o tipo de material, como corda, juta ou até seda. A esse material, Miró juntou as suas figurações, usando por exemplo a grelha negra que marca as suas obras em vários períodos, ou os objetos que o rodeavam. Numa das tapeçarias há um balde, que o artista devia usar para a tinta azul, de onde sai um tecido azul, como se fosse precisamente essa tinta. Noutra está um dos tubos de cartão onde vinha a lã.
De um lado o Miró mais material, do outro o artista que explora o espaço vazio. O curador quis precisamente mostrar o contraste e "deixar em evidência dois dos diferentes lados da personalidade de Miró". Assim, na parede oposta às tapeçarias, há quadros onde domina o branco, com um ou outro traço, círculo ou mancha a negro. "Estas obras são todas zen, mas se olharmos de perto há sempre surpresas", contou Messeri, dizendo que uma delas surpreendeu até os reis de Espanha quando visitaram a primeira exposição. Na tela há pedaços dos pelos do pincel que Miró usou. O artista terá forçado o pincel com a tinta ainda fresca, deixando aquele vestígio. "Apesar de o quadro parecer de nada, quase um cosmos branco, ao mesmo tempo ainda há uma fisicalidade", explica o curador.
"A ideia é mostrar Miró em todas as suas vertentes e mostrar um pintor que é diferente do artista que nós, enquanto historiadores de arte, estudamos na universidade. Ele viveu, depois de 1941, que é considerado o pico da sua carreira, até 1983. Não deixou de ser um artista brilhante, simplesmente fez coisas diferentes que não são necessariamente clássicas. Mas são Miró."