Por João Lopes.Avaliando a relação das imagens e dos sons com o conhecimento histórico, Jean-Luc Godard disse um dia: "A televisão fabrica esquecimento, o cinema fabrica memórias.".Evitemos a interpretação demasiado literal de tais palavras, até porque, ao longo de décadas, Godard tem sido um genial utilizador dos recursos televisivos - lembremos apenas essa obra monumental que é História(s) do Cinema (1989-1999). Acontece que, não poucas vezes, a aceleração televisiva, para mais potenciada pelos circuitos da internet, nos impede de escolhermos um tempo de paragem, reflexão e pensamento..Celebremos, por isso, tudo aquilo que no atribulado ano cinematográfico de 2020 nos convocou para alguma relação com memórias que, em tempos de globalização mediática, se distanciaram das suas raízes literárias e jornalísticas. Exemplos como Uma Vida Alemã e Para Sama definem mesmo um fascinante quadro de possibilidades, viajando da evocação do Holocausto até às convulsões que povoam os noticiários televisivos: o primeiro através do testemunho de Brunhilde Pomsel, que em 1942-45 trabalhou como secretária de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda nazi; o segundo dando conta de uma experiência familiar de sobrevivência na atual guerra na Síria..Curiosamente (ou talvez devamos dizer: sintomaticamente), o ano foi pontuado por momentos de eleição em que alguns agentes do mercado souberam devolver aos espetadores diversas e muito preciosas memórias. Sem pretender fazer a lista exaustiva desses momentos, recordo dois de singular valor emblemático..Foi possível redescobrir, por exemplo, uma grande fatia da obra de Luis Buñuel, incluindo não apenas as produções finais em França, mas também as preciosidades do seu período mexicano. As memórias das "novas vagas" da década de 1960 foram também revisitadas através de um dos seus capítulos menos conhecidos, o britânico, incluindo filmes de autores como Tony Richardson e Lindsay Anderson. Além do mais, vale a pena referir que essa dinâmica teve significativos reflexos no espaço de DVD e Blu-ray, incluindo uma magnífica edição de Apocalypse Now - Final Cut (nos dias finais de 2019, mas tendo o essencial da sua exposição ao longo de 2020)..Sublinhar a importância destes acontecimentos está longe de ser um mero gesto nostálgico. Trata-se de reconhecer que há zonas do mercado que não abdicam de trabalhar o património imenso da história dos filmes, tanto mais sedutor nos tempos que correm quanto muitos títulos estão a reaparecer em impecáveis cópias digitais restauradas, algumas delas em formato 4K (em linha direta com o mercado do Blu-ray)..Daí também um dado bizarro que o ano confirmou e, de alguma maneira, agravou. Assim, é um facto que uma parte fundamental da oferta de títulos clássicos esteve (e está) nas plataformas de streaming. Mas chega a ser confrangedora a incapacidade de tais plataformas contextualizarem, com um mínimo de rigor histórico, os títulos que disponibilizam - parecem esquecer-se de que não há opção cultural que não envolva alguma estratégia comercial..1. Uma Vida Alemã, Christian Krönes, Olaf S. Müller, Roland Schrotthofer e Florian Weigensamer 2. Mank, David Fincher 3. Malmkrog, Cristi Puiu 4. Da 5 Bloods - Irmãos de Armas, Spike Lee 5. David Byrne's American Utopia, Spike Lee 6. J'Accuse - O Oficial e o Espião, Roman Polanski 7. O Adeus à Noite, André Téchiné 8. Sempre o Diabo, Antonio Campos 9. OS 7 de Chicago, Aaron Sorkin 10. Para Sama, Waad al-Kateab e Edward Watts.Por Inês N. Lourenço.Neste ano, em plena pandemia, houve uma notícia que reacendeu o discurso mediático à volta dos Óscares: a Academia de Hollywood anunciava que iria passar a impor requisitos de inclusão e diversidade às obras candidatas a melhor filme (uma medida prevista para começar a ter aplicação prática entre 2022 e 2024). Na base desta decisão estão os pressupostos da falta de representatividade, nomeadamente de mulheres, grupos raciais e étnicos, comunidade LGBTQ+ e pessoas com deficiência. Em que é que se traduz? Na obrigação de cada filme ter pelo menos um ator ou atriz principais de um grupo sub-representado - afro-americanos, hispânicos, asiáticos, nativos americanos - e no elenco secundário haver um mínimo de 30% de mulheres, LGBTQ+ ou pessoas com algum tipo de incapacidade..A clara tomada de posição por parte da Academia, depois de anos a acumular críticas, terá simbolizado para muitos - usando a noção mais simplista - a "esperança num mundo melhor". Mas talvez se deva esmiuçar o que acarreta esta diligência feita em nome do politicamente correto. Se uma obra que se queira candidatar a melhor filme tem de responder a critérios que condicionam por princípio a sua natureza, qual a percentagem deixada para a criatividade autoral?.Vejamos, o cinema de Spike Lee tem sido plataforma de excelência na representação da comunidade afro-americana, da mesma maneira que o cinema de Hitchcock, para além do particular suspense, privilegiou uma "coleção" de personagens femininas loiras. Por outras palavras: o princípio da diversidade está aqui. Cada cineasta tem o seu motivo e identidade cinematográfica. Fazer de um filme uma prescrição médica para assegurar a boa saúde dermoestética das produções pode significar um golpe na liberdade que permitiu a construção de cinematografias com nome próprio. Eis o lado perverso das boas intenções..Chamar este tópico para um texto de final de ano serve apenas um propósito de reflexão sobre o futuro do cinema (não só em 2021) através dos filmes. Será que a experiência da pandemia vai moldar a narrativa das produções? Os filmes feitos à luz de uma "lei" da representatividade conseguirão ser mais do que veículos desse desígnio? Um filme como Malmkrog, do romeno Cristi Puiu - a encabeçar a minha lista do ano -, pode ser apreciado como puro objeto cinematográfico daqui a muitos anos, ou será descabido prezar a cadência de uma conversa filosófica no final do século XIX entre europeus de tez clara e francês afetado?.A excelente surpresa que foi a vitória de Parasitas, do sul-coreano Bong Joon-ho, na última edição dos Óscares não o teria sido se fosse outro fator que não o genuíno mérito do filme a colocá-lo entre os nomeados da categoria principal. Pense-se nisso. Talvez a espontaneidade de momentos como aquele tenha os dias contados. Talvez venha aí a burocracia de um ilusório espírito de inclusão, segundo o qual a performance de um filme junto da crítica depende do bom comportamento face aos novos requisitos. Em suma, a maturidade ainda não iluminou um certo discurso americano..1. Malmkrog, Cristi Puiu 2. O Paraíso, Provavelmente, Elia Suleiman 3. Dark Waters - Verdade Envenenada, Todd Haynes 4. O Caso de Richard Jewell, Clint Eastwood 5. Lovers Rock, Steve McQueen 6. O Ninho, Sean Durkin 7. O Lago dos Gansos Selvagens, Diao Yi"nan 8. Soul - Uma Aventura com Alma, Pete Docter e Kemp Powers 9. A Flor da Felicidade, Jessica Hausner 10. Da 5 Bloods - Irmãos de Armas, Spike Lee.Por Rui Pedro Tendinha.Olhamos para 2020 e pensamos nos primeiros meses em que era possível irmos às salas. O cinema sem máscaras e com a cadeira ao lado eventualmente preenchida com um estranho. Era o tempo das salas cheias: havia cada vez mais gente a ir às salas - 1917, de Sam Mendes, fazia mais de 300 mil espetadores e o empurrão dos Óscares a Parasitas, de Bong Joon-ho, era um fenómeno impensável..Agora, tudo mudou, mas há resistência. Salas como o Nimas e o Trindade anunciaram resultados mais do que decentes e quem vive e respira cinema marcou presença com máscara e os cuidados necessários. O cinema ficou um lugar seguro, mesmo quando aos fins de semana só tem permissão de funcionamento matinalmente..Foi comovente ver um Tivoli cheio no LEFFEST com Viggo Mortensen a apresentar o belo Falling - Um Homem Só e a agradecer ao público lisboeta. Também para ficar de coração cheio com o civismo dos milhares que foram dar força a uma edição física do Curtas de Vila do Conde e do Festival de Avanca. Mas guardo o momento em que uma sala ao ar livre no Periferias - Festival de Cinema do Marvão, em pleno agosto, mostrava O Paraíso, Provavelmente, de Elia Suleiman, com o cenário natural da muralha iluminada do castelo. A Palestina e o seu humor irónico, o alto Alentejo e a sua cinegenia natural..Em casa, foi também o ano em que a pirataria ganhou uma dimensão que poucos têm coragem de admitir. Foi raro o filme que foi lançado que não aparecia nos torrents da vida, mas também foi o ano em que o streaming ganhou a maratona. A Netflix em Portugal não soube promover pérolas como La Trinchera Infinita, potente filme basco que vai representar a Espanha no Óscar de melhor filme internacional. Poucos sabem que uma das sensações da Berlinale, Hora de Caça, do coreano Yoon Sung-hyun, está lá também disponível. Mas um serviço que nos dá Uncut Gems, dos Safdie; Mank, de David Fincher, Da 5 Bloods, de Spike Lee, ou Acaba tudo agora, de Charlie Kaufman, não nos pode ser estranho..Igualmente, não se pode dizer que a HBO Portugal tenha marcado passo com obras fundamentais como Bad Education, de Cory Finlay, e esse obrigatório Small Axe, antologia de cinco longas-metragens de Steve McQueen. A Disney +, ainda em arranque, jogou com trunfos fortes, mas também tem de rever o seu plano estratégico de comunicação, tal como a Apple TV - alguém explica por que razão um filme como On the Rocks, de Sofia Coppola, é tão pouco falado?.É igualmente um ano de consagrações femininas: nos EUA o estado de graça de Greta Gerwig com esse mágico Mulherzinhas, em Portugal Ana Rocha de Sousa com Listen, primeira obra de uma segurança e maturidade que fez inveja a muito boa gente..2020 teve resistência suplementar na memória: foi bom viajar pelo cinema total de Luis Buñuel e redescobrir a vaga inglesa dos anos 1960. Mas foi também revigorante apanhar com obras que não estrearam nos cinemas e foram para os videoclubes virtuais, com destaque para Ondas, Emma., Queen & Slim e The Last Blackman in San Francisco. O confinamento teve sempre apelo de novidade....1. Mulherzinhas, Greta Gerwig 2. Diamante Bruto, Irmãos Safdie 3. Ondas, Trey Edward Shultz 4. Jojo Rabbit, Taika Waititi 5. Tenet, Christopher Nolan 6. Queen & Slim, Melina Matsoukas 7. J'Accuse - O Oficial e o Espião, Roman Polanski 8. Soul - Uma Aventura do Outro Mundo, Pete Docter e Kemp Powers 9. Da 5 Bloods - Irmãos de Armas, Spike Lee 10. Acaba tudo agora, Charlie Kaufman