Mais uma votação, mais uma derrota. A bizarria de tudo isto é que são as derrotas sucessivas a manter a primeira-ministra no cargo, uma vez que só se o acordo de retirada fosse aprovado é que ela se demitia. O exotismo do Brexit, para além do grupo de pândegos que lhe deu origem, reside também na incontrolável degradação da expressão que catapultou a campanha no referendo: "recuperar o controlo". Na altura, estarão lembrados, o séquito de alucinados chefiado por Boris Johnson e Nigel Farage - homem que detesta tanto a União Europeia que há 20 anos consecutivos não larga o lugar em Bruxelas - acenou com a opressão sofrida por Westminster há décadas às mãos desse monstro burocrático e legislativo protagonizado por aqueles a quem Viktor Orbán chama homo brusselicus..Segundo a tese, o Reino Unido (tal como a Hungria), país vítima desse espezinhar comunitário insuportável, tinha de dar um murro na mesa para reconquistar poderes sacados na calada da noite à Câmara dos Comuns, esse local idílico da democracia liberal, sugado ao longo dos anos de competências várias. Para eles, o Reino Unido, mas em especial a sua Inglaterra branca, pura e excecional, era um autêntico Estado vassalo e havia que pôr definitivamente um travão nessa dinâmica. Não era preciso um grande brilhantismo político para rebater tudo isto em campanha, mas tanto os conservadores de Cameron como os trabalhistas de Corbyn acabaram por ajudar à festa, por omissão e, implicitamente, por cumplicidade..Podiam ter insistido no desenvolvimento económico singular que a adesão proporcionou ao país, no estatuto inigualável de Estado membro com o arco mais alargado de exceções aos tratados, permitindo-lhe o melhor de todos os mundos, no facto de ser da competência de Londres definir as entradas de imigrantes, do espectro alargado de iniciativa legislativa e financeira sobre políticas públicas que permanece na esfera da Câmara dos Comuns, da maravilha que tem sido usufruir do mercado único, da consolidação da paz na Irlanda do Norte e do estatuto especial que Washington ainda atribui ao Reino Unido, precisamente por este estar na UE. Como se tem penosamente assistido, Washington perde hoje pouco tempo com Londres, o quadro de paz irlandesa voltou ao centro do debate, a desagregação do Reino Unido está numa dinâmica perigosa, a economia definhou, as finanças públicas perderam liquidez, o espectro do aumento da escassez de bens essenciais é real, o quadro tarifário oneroso da OMC está à espreita, a diminuição do poder de compra britânico já se sente e, finalmente, mas não menos relevante, Westminster em vez de "recuperar o controlo" tem dado um triste espetáculo de absoluto desnorte..Os britânicos, tal como os restantes europeus colados dramaticamente ao processo infindável do Brexit, inconformados com a gestão calamitosa desde a campanha do referendo - onde, recordo, foi assassinada uma deputada -, devem repartir as responsabilidades: pelos Boris Johnsons desta vida e envergonhados defensores da permanência; pelos mentirosos da "recuperação do poder" e os que ficaram entrincheirados em dogmas ideológicos partidários pondo o interesse nacional debaixo do tapete. Todos são hoje o espelho do beco a que se chegou: um governo sem pingo de autoridade, uma primeira-ministra moribunda, uma oposição cristalizada, um Parlamento inoperante, uma sociedade partida ao meio, cansada e descrente, e uma unidade nacional em declínio. Qualquer que seja o roteiro de saída desta crise não curará tão cedo as feridas abertas. E é aqui que todos devíamos estar concentrados..Quando digo devíamos incluo, evidentemente, os restantes Estados membros, alertados nesta fase para os limites da inflexibilidade negocial expressa nos últimos quatro meses. Diga-se que esta postura não tem objetivamente contribuído para uma solução, mesmo que numa primeira fase tenha parecido correta e até inevitável. No entanto, o desequilíbrio que desde o início das negociações ditou o seu rumo (sempre a favor dos 27) poderia ter sido atenuado aqui e ali. E talvez estejamos a passar por um desses momentos, certamente o mais crítico. A consciência disto tem aliás sido manifesta na pluralidade de posições tidas no último Conselho Europeu, com alguns a propor uma linha temporal mais alargada capaz de acomodar um desenlace menos danoso para todos, e outros mais agarrados ao cumprimento escrupuloso do curto prazo. Estou em crer que, não havendo condições de regressar aos Comuns para uma quarta votação ao acordo de retirada, será pedida uma extensão do prazo até final do ano, o que abriria um espectro alargado de novos compromissos a que dificilmente escapariam as eleições europeias, uma antecipação das legislativas, até mesmo um novo referendo, sem esquecer o não-Brexit..Qualquer destas modalidades obrigará os partidos sistémicos a clarificar mensagens e lideranças, sendo que novos partidos em formação podem ganhar espaço político, sobretudo nas eleições para o Parlamento Europeu. Mais uma vez, qualquer que seja a opção seguida, ela nunca esbaterá a polarização enraizada, pode mesmo ser um fator extra. Ou seja, o cansaço e o dramatismo que se sente podem não passar de um momento ainda embrionário na convulsão política que espera o Reino Unido..Pode o resto da UE conviver com essa dinâmica em permanência por vários anos? Consegue a UE lidar com isso em paralelo à continentalização excessiva da sua política comunitária, tendencialmente de geometria variável e por isso com uma propensão maior para Paris e Berlim tentarem controlar as várias dinâmicas? Têm a Alemanha em transição política interna e a França em exasperação social cíclica, condições para assumir uma liderança benigna que a expurgue de abusos e com isso evite acelerar uma qualquer desagregação da UE? E quem fará o equilíbrio externo necessário à preponderância de um "diretório", fórmula em que tem assentado a integração europeia no pós-Guerra Fria? Está um Estado como Portugal, beneficiário como outros desta balança, preparado para lidar com tudo isto? O Brexit, a existir, pode ter sido um pecado original inglês, mas os seus efeitos colaterais dificilmente morrerão na ilha. É também por isso que devemos regressar o mais depressa possível a uma regra europeia intemporal: sobriedade, sensatez e juízo acima de tudo..Investigador universitário