Os likes do juiz Registo, as leaks do Rui Pinto e o roubo da nossa alegria

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Ao juiz Paulo Registo, do Tribunal Central Criminal de Lisboa, calhou por sorteio julgar o processo Rui Pinto/"Football Leaks", soube-se há dias. E soube-se antes que o mesmo juiz vai julgar também o processo e-Toupeira. Em ambos, de alguma forma o clube SL Benfica é parte interessada. Ora, 1) o juiz Registo é adepto benfiquista; 2) o juiz já publicou nas redes sociais acusações desbragadas contra o FC Porto; e 3) ele já publicou likes em tweets que chamavam "pirata" a Rui Pinto.

Não sei se o juiz Paulo Registo se pronunciou, publicamente e depois de sorteado, contra ou a favor de qualquer das partes envolvidas. Não sei se os sorteios foram feitos com trapaça. Não sei se o juiz tem uma ligação organizada formal ou escondida com qualquer das partes (ser dirigente, menor ou maior, do Benfica, por exemplo). Qualquer dessas hipóteses seria impeditiva de ele ser juiz naqueles julgamentos. Não sabendo, sei que Paulo Registo pode julgar o que o sorteio o mandou julgar.

E mesmo que amanhã se venha a saber que, afinal, qualquer daqueles pressupostos estavam escondidos e mancomunados, não sinto ter perdido tempo com esta crónica. Porque haver corrupção nos clubes de futebol, já soubemos, que algumas pessoas da Justiça não eram impolutas, já aconteceu, e casos incorretos entre juízes e clubes, também. Sem escândalo novo e comprovado, daí e agora, eu aproveitar para falar de um mal, menor é certo, mas demasiado vasto. A histeria com que o extremo-clubismo está a ser praticado entre nós. Antes confinada, nas tevês, aos opinadores têxteis, boçais amordaçados por camisolas, a pandemia invadiu-nos.

Repito, caso seja provado que aquele juiz benfiquista abusou por participar nos julgamentos referidos, isso seria grave. Entretanto, não sendo adepto de juízos prévios, prefiro falar do mal (menor, é certo, mas já factual e público) da decadência dos portugueses na sua relação com o futebol. Da qual é expressão esta polémica de um juiz não poder julgar por causa de uma sua opinião cidadã.

Em 2017, no processo dos "e-mails", caso que envolvia o FC Porto, o juiz Fernando Cabanelas disse que era sócio portista e isso não o inibia de julgar nem o obrigava a pedir escusa do julgamento. E fez muito bem. É o ponto em que estamos com o juiz Paulo Registo. O ter sido malcriado publicamente contra o FC Porto talvez me leve a suspeitar que é um desbocado, mas não o interditou de ser juiz, mais tarde, num caso em que o clube esteja envolvido. Da mesma forma, porque grita pelo Benfica, se me diz que tem bom gosto, não me garante ser ou não ser grande espingarda como juiz. Então, que conversa é esta, quando há outra a fazer?

Se um cidadão comum tem de ser escrutinado ao ser escolhido para membro de júri, é porque a sua parca formação jurídica não pode ser toldada ainda mais por preconceitos. Num juiz, o que espero dele é o seu saber jurídico e a garantia de que saberá pôr de lado os seus legítimos gostos particulares Aceitar que ser adepto de um clube impede-o de julgar algo que envolva esse clube, é considerar que a peste do extremo-clubismo é endémica e impossível de combater.

Sou benfiquista, por um daqueles acasos que leva uma pessoa a um clube. Um dia, ouvi o meu amigo Miguel Sousa Tavares a dar uma bela razão: "O Porto tinha o equipamento mais bonito do mundo." E eu, que tinha visto o Hernâni e Virgílio, fim dos anos 50, jogar com aquele azul e branco, ouvi e calei.

E comove-me sempre este argumento: "Sou do clube tal porque a primeira vez que entrei naquele estádio foi pela mão do meu pai." Se eu tivesse nascido dez anos antes seria do Sporting, por causa do meu patrício Peyroteo. Sou do Benfica por gratidão. Vivi um momento histórico em que um mulato e um negro, Coluna e Eusébio, faziam-me sentir grande e a dar lições justas ao Mundo - uma equipa europeia dominada por dois africanos. A minha equipa, o meu clube - não o escolhi, submeti-me a uma honra. Num tempo em que eu não tinha outras lições a dar.

Uma vez escrevi: "Esta taça não a celebro." O meu clube tinha feito uma trafulhice e comprara a um clube pequeno, o Estoril, o direito dele jogar em casa. De outra vez, porque o presidente do meu clube telefonou contra uma crónica minha e o diretor se agachou, telefonei a este: "Amanhã a minha crónica já não sai." Perdi 2000 euros, limpos por mês, e ganhei continuar benfiquista e cara limpa.

Se posso guardar a minha opinião clubística de cabeça alta, porque hei de ter a soberba de desconfiar da opinião de um juiz? Ainda há dois meses um juiz ouviu a testemunha que eu era a dizer que sim, era benfiquista, e que sim, foi errado, como eu escrevera numa crónica, o estádio do meu clube receber a claque do adversário num galinheiro. Não me pareceu o juiz espantar-se, pareceu-me um homem honesto a ouvir outro homem honesto.

E não sou ingénuo, aceito as paixões do futebol e vivo-as sem angústias existenciais. O meu amigo Francisco José Viegas diz, cito de memória, das muitas vezes que lho ouvi: "Quero é um golo do Porto, seja ele precedido de três faltas, marcado com a mão e, ainda melhor, sem ter entrado mas validado pelo árbitro." Lembrei-me que da única vez que me agarrei a um polícia aos abraços foi a celebrar um crime: o Vata metera a bola com a mão. O futebol não é uma aula de Moral, nem o meu clube, o seu Profeta.

Das duas vezes que mais me indignei foi por outra camisola querida, a de Portugal. Quando fomos impedidos de ir a um Mundial, com Rui Costa expulso por sair devagarinho num jogo com a Alemanha, e quando fomos eliminados pela França por causa da mão duvidosa de Abel Xavier na grande área. Ainda hoje me indigno, apesar de tanto vídeo passado e repassado me garantir que tenho razão, de uma vez, e não a tenho, da outra.

O futebol é um gosto e um gosto bom. Deixá-lo ser derrotado por fanatismos, torna-o feio e estúpido. Até a ironia das suas contradições nos é roubada, porque o fanatismo não tem dúvidas. Recordem-se, ingratos, que coisa mais linda já houve que a cavalgada de um trapalhão. Vai falhar... vai falhar... chuta, oh, falh... Golo! Tinha a camisola de nós todos, lembrem-se.

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