"Os homens têm acesso a empresas melhores"

Como varia a desigualdade salarial em Portugal entre mulheres e homens em função da profissão e da formação académica? Os economistas Luís Aguiar-Conraria e Miguel Portela estão a tentar perceber.
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Luís Aguiar-Conraria e Miguel Portela, economistas da Universidade do Minho, estão a investigar a desigualdade salarial em função do género. Constataram que as mulheres são 2/3 nas profissões mais mal pagas e só 1/3 nas mais bem pagas. E que a maior diferença salarial - 30% - se encontra nos salários entre 800 e 1000 euros.

O que é o vosso estudo?

Miguel Portela (M.P.) - Isto começou com o interesse que temos pela performance ao longo do tempo de mulheres e homens no mercado de trabalho. E decidimos olhar para duas coisas, salários e promoções, através de um instrumento que existe desde 1985 e que são os quadros de pessoal do setor privado português (não estão os trabalhadores independentes nem o setor público, a administração pública, mas inclui por exemplo a CGD). Pegámos nesses quadros, que são enviados pelas empresas anualmente ao Ministério do Trabalho, e que têm grande detalhe - idade, sexo, formação, posto, experiência - e analisámo-los.

De quantas pessoas estamos a falar?

M.P. - A amostra tem 184 mil trabalhadores de 164 profissões, com um salário médio de 1292 euros, bastante acima da média nacional. Os salários da amostra variam entre 485 euros e 19575. E há 52% de homens e 48% de mulheres. A diferença salarial média bruta na amostra entre mulheres e homens, sem contar com educação ou idade/experiência, é de 30%. Se atendermos à educação ou idade baixa para 25%.

Luís Aguiar-Conraria (L.A.C.) - Restringimos a análise a empresas com cem ou mais trabalhadores, porque têm a dimensão suficiente para se fazer a comparação, e só escolhemos empresas com um número mínimo de mulheres e homens. Se por exemplo na indústria da tecelagem houver mais de 95% de mulheres, fica fora. Tirámos pessoas que recebem mais de 20 mil euros por mês, na maioria homens. E não incluímos profissões com menos de 200 pessoas.

M.P. - Outra coisa que pode subestimar a desigualdade neste estudo é que estamos a falar de salário bruto, o salário-base mais as prestações regulares, e só de pessoas em full time. Por outro lado, se acreditarmos que na função pública a discriminação é menor, a nossa caracterização vai sobrestimar a desigualdade, porque a expectativa é de que aí a diferença salarial seja mais pequena. Mas há um ponto importante: grande parte das diferenças salariais são determinadas pelo posto e pela promoção do indivíduo, e esse é o debate adicional. Se dentro do setor público mulheres e homens com o mesmo posto por definição têm o mesmo salário, a discriminação pode vir pela promoção e chegada ao cargo.

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E a conclusões já chegaram?

L.A.C. - Constatámos que a discriminação vem dos dois lados, salário e posto/ promoção. Se nós olharmos para as profissões e as ordenarmos das mais mal pagas para as mais bem pagas temos uma proporção muito maior das mulheres nas profissões mais mal pagas - 65%, 70%, e nas mais bem pagas a proporção de mulheres cai para um terço. E depois dentro de cada profissão voltamos a ver essa diferença salarial. A diferença salarial é máxima em profissões com salários na casa dos 800/1000 e depois começa a diminuir para profissões mais bem pagas até chegar aos 2000 e poucos euros, onde a discriminação é mínima, cerca de 5% - e daí para a frente a diferença salarial volta a aumentar.

Como interpretar essas flutuações?

L.A.C. - Dados é uma coisa; com interpretações é preciso ter cuidado. Mas para profissões muito mal pagas, na casa dos 500 e tal euros, a discriminação não pode ser muito grande porque há um salário mínimo. À medida que o salário é maior é natural que, havendo desigualdade, ela se acentue. Mas não temos explicação para que diminua entre os mil e 2000.

M.P. - Pode estar relacionado com serem em média pessoas com maior nível educacional e maior capacidade de reconhecerem e combaterem a discriminação. Importante é sublinhar que o salário aumenta na proporção da educação e nas mulheres aumenta mais rápido, ou seja, a diferença salarial vai-se atenuando. A partir de 2500 euros a diferença salarial pode ser explicada por ocupação de lugares de topo nas empresas.

L.A.C. - Há uma conclusão muito interessante a que chegámos: grande parte destas diferenças têm que ver com o facto de os homens irem para melhores empresas do que as mulheres. E a explicação para isso é especulativa: eles podem ter acesso às melhores empresas porque estão mais disponíveis para procurar novos empregos e experimentar mais vezes até acertarem, essas empresas podem não querer as mulheres por qualquer motivo, ou os homens têm mais mobilidade porque tipicamente não ficam em casa a tomar conta dos filhos e podem ir para mais longe onde pagam melhor. São explicações plausíveis, mas com os nossos dados não temos forma de responder a essas perguntas, pelo menos para já.

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Em que fase estão?

L.A.C. - Temos uma aluna de mestrado que se chama Windy Moro. Ela pegou neste assunto para fazer a sua tese, que vai ser terminada daqui a poucos meses. Neste momento temos uma caracterização para 2012, porque a partir daí o ministério não disponibiliza estes dados. Sabemos que existem e não percebemos porque não os disponibilizam. Queremos apresentar o nosso protesto. Nos últimos anos o nosso mercado tem tido um comportamento surpreendente e seria importante ter dados para estudar melhor.

O que é que já se sabia antes deste vosso trabalho?

M.P. - Houve um hiato de tempo em que esta questão não teve muita atenção, mas há dois trabalhos muito recentes, do ano passado, da Ana Rute Cardoso, do Instituto da Análise Económica de Barcelona, um deles com Paulo Guimarães, que têm de ser mencionados. Nesses trabalhos a conclusão é de que a diferença salarial média entre mulheres e homens, depois de já controlada para efeitos como idade e educação, andava na casa dos 23%. E um resultado muito interessante desse estudo é de que a diferença salarial média é mais baixa nos escalões etários mais baixos.

Discriminação é maior entre as pessoas mais velhas?

M.P. - Sim. Nos mais jovens era de 10% e nos mais velhos é de 30%. Este é um ponto de partida importante. Outra coisa interessante é que a discriminação é mais ou menos independente das qualificações. Ou seja, quer estejamos a falar de pessoas com o ensino secundário ou superior, a discriminação é mais ou menos semelhante.

E o que é que o vosso estudo traz de verdadeiramente novo?

L.A.C. - É estarmos a ir ao detalhe da profissão. Observar em cada tipo de profissão e de salário a diferença salarial.

M.P. - Estamos a ver diferenças que existem no acesso às profissões e depois olhamos para dentro da profissão. A seguir iremos olhar para as promoções. Por exemplo: num grupo de contabilistas que uma empresa tem, qual o que tem mais probabilidade de ser promovido a diretor financeiro, e se ser mulher ou homem tem impacto nessa probabilidade. Mas essa análise está por fazer.

L.A.C. - Outra coisa é que no trabalho da Ana Rute Cardoso a formação superior é olhada como um todo e nós estamos a olhar para as diferentes formações superiores. Não é a mesma coisa ser licenciado em História e ser licenciado em Engenharia. A hipótese de que partimos é que nas licenciaturas mais bem remuneradas pelo mercado há uma sub-representação das mulheres. São as licenciaturas do chamado STEM: Science, Technology, Engineering and Mathematics (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática). Apesar de as mulheres estarem maioritariamente no ensino superior, nestas áreas em concreto estão em minoria.

M.P. - É metade-metade o número de homens e mulheres que acabam o secundário. Já no ensino superior elas são 60%. Mas depois nas profissões associadas a ciência e tecnologia elas estão em minoria: são 30%.

E essa formação dá acesso a lugares mais bem pagos, é isso?

M.P. - Sim. Neste momento o prémio salarial de uma profissão STEM é de 10%. Se compararmos com o que ganha alguém só com o ensino secundário, as pessoas com licenciatura STEM ganham mais 70%, ao passo que as com outras licenciaturas ganham mais 55%. E quando têm uma licenciatura STEM elas são menos discriminadas. Ainda estamos a calcular a diferença mas entre licenciados e licenciadas STEM a diferença salarial é substancialmente menor.

Seria interessante perceber porque é que as mulheres escolhem menos esses cursos.

M.P. - Sim. Há uma discriminação no local de trabalho, isso parece-nos óbvio. Mas também há um problema de mentalidade na escolha do curso, que é uma opção quer das famílias quer dos miúdos. Num curso muito específico como o de Engenharia Informática, a percentagem de mulheres é de 19%. E esta é daquelas profissões que têm salários mais elevados. Aqui não é uma questão de discriminação, mas de opção, e é preciso "acordar as mentalidades para isso."

L.A.C. - Ou seja, é discriminação também mas mais subtil, a de empurrar as meninas para letras e os rapazes para matemática.

M.P. - Um exemplo: no curso de Economia tenho uma aluna que entrou na Escola Naval na área da engenharia, porque queria mesmo esse curso, e os pais obrigaram-na a sair porque entendem que não é um "curso de rapariga". E agora quer ir para um curso de Engenharia e Gestão Industrial e os pais voltam a não deixar. E não estamos a falar de pais com a quarta classe.

O que vos interessou por este assunto?

L.A.C. - Tenho duas filhas e estou a educá-las para serem tudo o que quiserem. O que vejo no meu círculo de amigas é que elas têm muito mais dificuldade do que os homens no acesso à profissão e em passar ao passo seguinte. Esse tipo de barreiras incomoda-me e devem ser combatidas, todos temos a ganhar em que sejam combatidas.

São feministas?

M.P. - Não sei bem o que entendo por ser feminista. Sou defensor da igualdade de direitos. Também tenho uma filha e preocupa-me como vai ser a entrada dela no mundo do trabalho. Para mim é óbvio que devem ter direitos e oportunidades iguais.

L.A.C. - Sou e já era antes de saber que o era. Sempre fui igualitarista. Mas é importante dizer que estamos muito alerta para não atravessar a fronteira entre um trabalho científico politicamente empenhado e um trabalho politicamente comprometido - estarei sempre atento e nem eu nem o Miguel cometeremos este erro.

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