A tradição associa os novos títulos de Star Wars ao período natalício. Mas a saga de Darth Vader e Luke Skywalker já não é o que era. Como bem sabemos, em 2020, nem sequer haveria condições para cumprir a tradição, já que as salas de cinema de todo o mundo continuavam (e continuam) a debater-se com os dramas gerados pela situação de pandemia. Em qualquer caso, uma notícia marcou de forma indelével o final do ano: Patty Jenkins, a realizadora de Mulher Maravilha (2017) e Mulher Maravilha 1984 (2020), irá dirigir o próximo título da saga, intitulado Rogue Squadron. Para que a tradição possa voltar a ser o que era, a data de lançamento já está agendada: 25 de dezembro de 2023. A novidade foi devidamente sublinhada pelas regras de diversificação profissional que, a todos os níveis, têm marcado as políticas de produção de Hollywood. Ou seja: Jenkins será a primeira mulher a assinar a realização de um filme de Star Wars. Aliás, o simbolismo envolveu também o facto de a notícia ter sido dada por outra mulher, Kathleen Kennedy, presidente da Lucasfilm - aconteceu durante o chamado "dia dos investidores", organizado pela Disney para dar conta dos seus principais projetos, do cinema aos parques temáticos.. Rogue Squadron é apenas uma das novidades que irá ostentar o "selo" Star Wars. A partir do momento, há quase uma década, em que a saga criada por George Lucas passou a integrar o império Disney, tem sido seguido um calendário com qualquer coisa de plano quinquenal (sem conotações soviéticas...): a estratégia desenvolve-se mantendo a presença multifacetada da marca Star Wars na paisagem global do entertainment. Assim, para depois de Rogue Squadron já está previsto, por exemplo, um outro filme, ainda sem título, dirigido por Taika Waititi, o neozelandês que ganhou um Óscar com o argumento do seu filme Jojo Rabbit (2019)..As muito mediatizadas manifestações dos fãs de Star Wars podem sustentar todo um imaginário festivo, em que a alegria da celebração se cruza com as estratégias da promoção, mas não bastam para abarcar e compreender a dinâmica financeira do universo Star Wars. Envolvem até um desconcertante valor de "purificação": tudo se passa como se aquilo que acontece "numa galáxia muito, muito distante" fosse a expressão utópica de uma existência sem qualquer relação com as realidades muito terrenas em que, mesmo com todos os seus sonhos e artifícios, o cinema existe. Até porque algo de essencial mudou a partir de 21 de dezembro de 2012, data em que a Walt Disney Company concluiu a aquisição da Lucasfilm. Valor global do negócio: 2,2 mil milhões de dólares em dinheiro e 1,85 mil milhões em ações - contas redondas: 1,8 e 1,5 mil milhões de euros, respetivamente.. Podemos acrescentar: não era caso para menos. A saga lançada por Lucas em 1977, precisamente com o filme que se intitulava apenas Star Wars, transformou-se num fenómeno realmente global, gerando uma multiplicidade de negócios que rapidamente envolveram outros domínios, para lá da produção de filmes para as salas escuras: séries de televisão, videojogos, banda desenhada, brinquedos, parques temáticos, etc. Eram, realmente, tempos diferentes. Desde logo na perceção dos próprios filmes através da publicidade: a palavra marketing circulava como um preciosismo linguístico, não um cliché da linguagem corrente. No mercado português, podemos observar um curioso sintoma disso mesmo na identificação (comercial e popular) desse primeiro título da saga: para todos os espectadores, novos e velhos, que o descobriram nas salas, tratava-se, não de Star Wars, mas de A Guerra das Estrelas.... O título possuía, aliás, o apelo de uma noção primitiva de aventura mais ou menos inocente. Agora, com o triunfo global de um marketing que aposta na imposição de palavras e fórmulas anglo-saxónicas, o filme de 1977 passou a ser um híbrido linguístico: Star Wars: Episódio IV - Uma Nova Esperança. A mais recente derivação do universo original (um dos chamados "filmes de antologia") dá pelo nome bizarro de Han Solo: Uma História de Star Wars (2018). Como é do conhecimento geral da população cinéfila, a saga de nove episódios não foi produzida por ordem cronológica das respetivas ações. Como produtor ou realizador, Lucas está diretamente ligado aos seis primeiros: o quarto, o quinto e o sexto, que surgiram entre 1977 e 1983; o primeiro, o segundo e o terceiro lançados de 1999 a 2005. Já com chancela Disney, Star Wars adquiriu uma regularidade, industrial e comercial, que nunca tinha tido: a trilogia final - episódios VII, VIII e IX, o primeiro e o último realizados por J.J. Abrams, cineasta que seria fundamental numa certa reconversão visual e espetacular dos filmes - chegou às salas de cinema de todo o mundo com intervalos de dois anos entre os respetivos títulos, em dezembro de 2015, 2017 e 2019..Mais do que nunca, os atuais planos de expansão de Star Wars assemelham-se a um processo científico de infinita clonagem. Os filmes de longa-metragem, concebidos para o circuito clássico das salas (com ou sem pandemia, veremos...) constituem apenas uma das frentes de produção. Em boa verdade, essa é uma lógica de gestão que se foi consolidando ao longo das décadas, ainda sob o comando de Lucas. Basta lembrar que as receitas globais dos nove títulos canónicos (um pouco mais de dez mil milhões de dólares) correspondem apenas a 14% das receitas geradas por todas as variações comerciais, da televisão aos brinquedos, encarnadas pela saga (estimadas em quase 70 mil milhões)..Os filmes de Jenkins e Waititi deverão surgir em paralelo (ou alguma forma de alternância) com uma outra trilogia que se anuncia como "independente" da saga de Skywalker: os respetivos argumentos estão entregues a Rian Johnson, realizador responsável por Star Wars: Episódio VIII - Os Últimos Jedi (2017). Grande atividade está também prevista no domínio televisivo, sobretudo depois do impacto das duas primeiras temporadas da série The Mandalorian, um dos principais trunfos da plataforma Disney+: criada por Jon Favreau em 2019, a série, já com uma terceira temporada em fase de produção, aposta na recriação de referências de Star Wars num registo de aventuras que o próprio Favreau definiu a partir da inspiração do western e dos filmes de samurais.. Com lançamento previsto para 2022, Andor é outra série em gestação, neste caso narrando os antecedentes da história de Rogue One: Uma História de Star Wars (2016), o primeiro dos "filmes de antologia" que começou a desenvolver um novo conceito: recriar os elementos figurativos e o modelo de aventuras de Star Wars, agora introduzindo novas personagens (por exemplo, a guerreira Jyn Erso, interpretada por Felicity Jones). Obi-Wan Kenobi, o lendário mestre Jedi, estará também no centro de uma série (homónima) com Ewan McGregor a retomar o papel que, em 1977, foi criado por Alec Guinness..Face a este ziguezague de histórias e personagens, não deixa de ser desconcertante recordar que o projeto de A Guerra das Estrelas nasceu assombrado por muitos percalços, adiamentos e dúvidas. Lucas estreara-se na longa-metragem com THX 1138 (1971), um brilhante exercício de ficção científica que desenvolvia os temas e ambientes de uma curta-metragem que realizara em 1967, ainda na condição de estudante de Cinema na Universidade da Califórnia. Desde essa altura, alimentou a ideia de concretizar um outro tipo de aventura, menos trágica, mais festiva, tendo mesmo tentado garantir os direitos de adaptação de Flash Gordon, a banda desenhada criada em 1934 por Alex Raymond..Entretanto, Flash Gordon foi adquirido pelo produtor italiano Dino De Laurentiis (que lançaria a respetiva adaptação, realizada pelo inglês Mike Hodges, apenas em 1980), levando Lucas a trabalhar em algo bem diferente: American Graffiti (1973), misto de romantismo e comédia, com muitas componentes autobiográficas, sobre um grupo de jovens que celebram o fim do liceu e a entrada na universidade (subtítulo português: Nova Geração).. Na altura, Lucas integrava uma galeria de notáveis - Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Brian De Palma, Steven Spielberg, etc. - que, de facto, estavam a mudar todas as regras do jogo no interior da grande máquina de Hollywood. Em 1975, com o espetacular sucesso do seu prodigioso Tubarão, Spielberg inaugurara, para o melhor e para o pior, a idade dos blockbusters..Ainda assim, para Lucas, a procura de um estúdio disposto a financiar Star Wars não foi simples: depois da revelação através de filmes relativamente baratos, os executivos duvidavam da sua capacidade para gerir um tão grande orçamento... Na sequência de sucessivas recusas, seria Alan Ladd Jr., presidente da 20th Century-Fox, a dar um voto de confiança a Lucas, avançando com 11 milhões de dólares para a produção (valor, apesar de tudo, mediano para a época). Para a história épica da galáxia de Hollywood, registe-se que entre os estúdios que, na altura, não quiseram colocar o seu dinheiro em Star Wars estava uma empresa lendária, de seu nome Walt Disney Productions.