Na cidade que projetou para a imortalidade os nomes de Ringo, George, John e Paul, o ritmo mais popular hoje em dia é aquele que sai dos pés de Salah, Firmino e Mané, os Fab Three do ataque do Liverpool que volta a aparecer pelo caminho do FC Porto na Liga dos Campeões, um ano e pouco depois de ter destroçado as ilusões europeias do dragão nesta mesma competição, na época passada..Naquela altura, o letal trio ofensivo do Liverpool fez gato-sapato da melhor equipa portuguesa - que seria campeã nacional no final da temporada com a melhor defesa e o melhor ataque. Mané fez três golos, Salah um e Firmino outro na goleada dos reds por 5-0 no Dragão. Essa primeira mão dos oitavos- -de-final da Champions passada é uma memória ainda fresca, resgatada assim que o sorteio destes quartos-de-final voltou a colocar os homens de Jürgen Klopp no caminho da equipa do FC Porto. E o terror espalhado por aqueles três nomes nas defesas contrárias anuncia-se mais uma vez como a principal ameaça às aspirações dos portistas em chegar mais longe na prova..Na época passada não houve, de resto, trio de ataque mais produtivo em todo o futebol europeu. Mohamed Salah, Roberto Firmino e Sadio Mane chegaram ao final da temporada com mais de 90 golos marcados (91), o equivalente as 67,4% da produção ofensiva do Liverpool. Na Liga dos Campeões, esse peso foi ainda mais significativo, acima dos 70% (73,2), tendo marcado dez golos cada um ao longo da caminhada que levou os reds até à final da prova - onde perderam para o Real Madrid naquela noite horrível do guarda-redes Loris Karius, recordam-se? - e fixado um novo recorde como o tridente ofensivo mais goleador na era moderna da competição (desde 1992)..Os números deste ano mostram um Liverpool menos exuberante, com menos golos marcados. E com isso também os números de Salah, Firmino e Mané parecem menos impressionantes. Mas nem por isso deixam de sublinhar o poder de fogo deste trio, numa equipa que esta temporada doseia mais os esforços (e o foco) entre a Champions e esse objetivo quase obsessivo da recuperação do título inglês, que escapa desde 1990. Em 89 golos já marcados pela equipa de Klopp na época em curso, 55 foram apontados pelos Fab 3 (61,8%). Numa comparação direta, note-se que o trio mais produtivo do FC Porto (Soares-Marega-Brahimi) não chega sequer a 45% (43,1%) dos golos totais. Na Liga dos Campeões, a influência volta a ser maior, pois os três atacantes foram responsáveis por 66,7% dos golos do Liverpool na caminhada até estes quartos-de-final, marcando oito em doze..A estatística certifica o óbvio: o Liverpool tem um dos trios atacantes mais perigosos do futebol atual. E a questão apresenta-se obrigatória: como parar este ataque dos reds? Como pode o FC Porto fazer aquilo que outros colossos europeus não fizeram, nem a maioria das equipas da supercompetitiva Premier League conseguem? É uma missão impossível?.A máquina que o trio "esconde".Para Domingos Paciência, treinador de futebol e antigo avançado dos dragões na década de 1990, não há como negar a evidência: "Eles são muito fortes no ataque. Na época passada a eliminatória ficou logo decidida aqui [no Porto]. Têm uma qualidade muito boa." Luís Catarino, comentador da SportTV que acompanha regularmente o futebol inglês e os jogos dos reds, fala numa influência [desse trio] que se faz sentir "logo na fase defensiva, quando o Liverpool não tem bola". E António Duarte, um jovem aspirante a treinador com curso da AF Porto e uma paixão assumida pela equipa Anfield (cujas análises pode seguir na conta de Twitter @ShanklyLegacy), destaca a sociedade perfeita entre Firmino, "o arco", e as "setas" Salah e Mané..Ainda assim, por muito produtivo e importante que seja, este temível trio não pode ser visto separadamente de uma ideia de jogo coletivo apaixonadamente ofensiva como a que Jurgen Klopp instalou em Liverpool nas últimas quatro temporadas, alertam os especialistas ouvidos pelo DN. "É verdade que o trio ofensivo é muito bom, mas é toda uma equipa de muita mobilidade, com grande dinâmica de jogo, que obriga a muitos cuidados defensivos por parte dos adversários", aponta Domingos. "Tem de ser observado numa perspetiva total", acrescenta Catarino. Ou seja, a ideia de um Liverpool assente na força do seu trio atacante "é uma ideia correta em abstrato, mas que esconde muitas mais coisas que vão suportar isso", reforça António Duarte..Tentemos então decifrar um pouco melhor este Liverpool, uma equipa que tem feito do fulgor atacante a sua imagem de marca sob a batuta de Jürgen Klopp. "É uma ideia de jogo que tem que ver com a forma como Klopp gosta de projetar muitos jogadores na frente e que podemos constatar com uma marca rara desta equipa, pouco vista no futebol, que é o facto de os dois laterais subirem muitas vezes ao mesmo tempo no terreno", aponta António, que realça ainda "a forma como os médios transportam a bola de forma direta para o ataque"..Luís Catarino e Domingos também identificam essa atividade frenética dos laterais pelos corredores como um dos traços mais perigosos deste Liverpool e o comentador da SportTV acrescenta-lhe ainda a forma como o médio "Fabinho funciona como o pêndulo perfeito a fazer as dobras aos laterais", "a qualidade do guarda-redes Alisson" a jogar com os pés fora da área ou a "presença do central holandês Van Dijk, talvez o melhor do mundo nesta altura, muito forte no um para um e no controlo da profundidade", como fatores que permitem alimentar um futebol agressivo e de linhas subidas como o deste Liverpool.."Firmino é o jogador mais importante".A influência de Salah, Firmino e Mané no jogo ofensivo do Liverpool começa a ser projetada logo no momento defensivo. Quando a equipa não tem bola. "Logo aí eles estão a influenciar o futebol ofensivo da equipa, ao ficarem lá na frente, sem recuar para apoio aos laterais ou o que seja. Ao ficarem na frente, agrupados no meio, eles não deixam os laterais contrários subirem, nem o central condutor de bola sair a jogar ou meter o primeiro passe para a zona central", explica Luís Catarino..Ou seja, não são apenas os finalizadores do processo. Cabe-lhes a eles também o momento inicial desse processo, ao condicionarem a construção de jogo do adversário e darem rosto à primeira linha da pressão alta da equipa de Klopp..Com bola, claro, o futebol de Salah, Firmino e Mané ganha a sua dimensão mais especial. Um trio complementar que impressiona pela mistura de técnica, inteligência, rapidez e eficácia na hora de atacar as defesas contrárias. E que se entende às mil maravilhas..O egípcio Salah, que foi finalista do prémio The Best, da FIFA, no ano passado - ficou em terceiro, atrás de Cristiano Ronaldo e Luka Modric -, melhor marcador da Premier League, jogador africano do ano, entre outras honrarias, é o goleador por excelência, rápido e letal na abordagem às balizas contrárias. Um jogador por quem Domingos Paciência confessa admiração especial. "Gosto muito das características dele. É um jogador muito técnico, tanto no corredor como no jogo interior", realça o antigo internacional português, cujo filho mais velho, Gonçalo, ainda esteve alguns minutos em campo nessa goleada dos reds no Dragão, na época passada..Mas se Mohamed Salah é a face visível do golo, é o trabalho (quase) invisível do brasileiro Roberto Firmino que é amplamente apontado como o fator mais importante do ataque do Liverpool. "Mais do que marcar golos, ele facilita operações", justifica Luís Catarino. Firmino interpreta na perfeição aquilo a que o futebol se habituou a chamar de "falso 9". Ou seja, um avançado centro que está mais preocupado em acrescentar elos de ligação no ataque do que propriamente em dar o último toque às jogadas. Isto apesar dos nada desprezíveis números que consegue apresentar também na finalização (14 golos nesta época).."A ideia de ter Firmino no centro do ataque e lhe dar liberdade de recuar ao meio-campo é formar quase um losango nessa zona central do terreno que permita criar superioridade", refere o comentador da SportTV, lembrando que "Firmino liberta esse espaço na zona central do ataque para as entradas de Salah e Mane em diagonais".."Firmino é o jogador mais importante do Liverpool. Sobretudo pela forma como potencia os movimentos dos outros dois avançados. Diria que Firmino é o arco e Salah e Mane são as flechas do ataque do Liverpool", ilustra por sua vez António Duarte, que não poupa nos elogios ao brasileiro, "o conector de todo o jogo da equipa"..Se Firmino é o mais influente e Salah o mais ameaçador, convém não esquecer o terceiro elemento destes Fab Three de Anfield Road. Sadio Mané é muitas vezes o homem menos valorizado do trio, mas esse é um erro que pode custar caro. O FC Porto provou-o amargamente na pele, de resto, quando o senegalês apontou três golos no Dragão na época passada.."Firmino é o relógio; Salah é o finalizador, uma seta, um 9 que joga como extremo; e Mané é uma espécie de mistura dos outros dois, um avançado que joga muito bem nas entrelinhas, muito perigoso a atacar espaços como o Salah e com a capacidade associativa do Firmino", resume o analista que tem a conta @Shanklylegacy no Twitter. "O Mane é nesta altura o mais frenético dos três. Está a jogar barbaridades", alerta mesmo Luís Catarino..No que respeita a momentos de forma, Mohamed Salah parecia até o elemento menos perigoso do trio até à última sexta-feira, atravessando uma rara crise goleadora que se prolongava há oito jogos. O jejum acabou, no entanto, na altura certa, quando o Liverpool mais precisava, com o egípcio a vir em resgate dos reds em Southampton, numa altura em que o empate no marcador, à entrada para os dez minutos finais, ameaçava atrasar a equipa de Klopp na corrida ao título inglês. Salah aproveitou uma recuperação de bola e saiu disparado pelo meio campo contrário até encontrar a nesga de espaço necessária à entrada da área para atirar certeiro para as redes. Um golo típico deste Liverpool..O título inglês e a nova versão dos reds.O facto de os reds estarem neste ano mais bem lançados do que nunca na luta pela reconquista do título inglês, a grande obsessão que habita Anfield Road há 29 anos, é um dos fatores que podem ajudar o FC Porto, de alguma forma, neste novo duelo com a equipa de Liverpool, acredita Luís Catarino. "Estão mais obcecados com o título do que com a Champions neste ano.".Uma obsessão que levou também Klopp a alterar ligeiramente a forma de jogar deste Liverpool, notam os especialistas contactados pelo DN. "Perdeu um bocadinho aquela matriz de pressão muito alta. Já não faz isso durante tanto tempo nos jogos", observa Luís Catarino, para quem essa alteração tem permitido ao Liverpool "dosear melhor os esforços ao longo da época". "Já não entram em todos os jogos com aquele apetite voraz em golear toda a gente", acrescenta..Uma análise reforçada por António Duarte, que assinala o facto de o novo 4x2x3x1, introduzido por Klopp como variante tática ao habitual 4x3x3, permitir "um jogo por vezes mais pausado" dos reds, a melhorar a gestão física, mas também confere "um aumento de criatividade" no processo ofensivo..Uma maior diversidade tática, portanto, que aumenta a gama de soluções numa equipa que já tinha argumentos suficientemente preocupantes para os adversários. Um claro upgrade, sublinha António Duarte: "O Liverpool subiu o nível nesta época." E para isso contribuíram muito os luxuosos retoques feitos no plantel, com as contratações de nomes como os do guarda-redes Alisson Becker, dos médios Fabinho e Keita, e do avançado Shaqiri. "Foram retoques certeiros", considera Catarino..E António desenvolve: "Alisson é excelente com os pés, não tem problemas em jogar fora da área e permite jogar com linhas altas; Fabinho teve dificuldades de adaptação no início, mas tornou-se importante no meio-campo; Keita não tem jogado muito, mas é um geniozinho; e Shaqiri é muito forte nos espaços interiores, quando entra para pôr fogo no jogo.".Com o internacional suíço, o tridente ofensivo do Liverpool transforma-se num quarteto, com a equipa a vestir o fato do 4x2x3x1, em que, mais uma vez, o papel de Firmino resulta determinante. "Já foi usado como número 10 nesta época", lembra Luís Catarino, para quem essa versão confere um "melhor ataque organizado" ao Liverpool, deixando a equipa de Klopp "mais versátil e imprevisível". "Firmino dá o compromisso, numa equipa que aprendeu a pausar melhor o jogo", reforça o comentador da SportTV..O papel do FC Porto.Ora, com tantos elogios e pontos fortes identificados, sobram preocupações para o FC Porto, que, de resto, já as vivenciou na pele. Como pode o campeão nacional aspirar a bater esta máquina de Jürgen Klopp, um ano depois de ter sido esmagado por ela?.Domingos realça a tarefa prioritária: "O FC Porto terá de estar muito forte defensivamente e não cometer erros atrás. Perante uma equipa de muita mobilidade e dinâmica, é preciso ter cuidados defensivos redobrados. Não cair no engodo de abandonar a posição para acompanhar os adversários.".Luís Catarino sugere um FC Porto de "linhas recuadas", em "bloco médio-baixo" e a privilegiar "o controlo à zona". O que permitira depois ativar os "ataques rápidos, à procura da profundidade de Marega", enquanto António Duarte salienta a necessidade de os dragões, no processo defensivo, serem capazes de um "equilíbrio entre o controlo da largura [subida dos laterais contrários] e o bloqueio dos espaços interiores", com um "foco especial" nas "movimentações de Firmino nas costas dos médios"..Neste particular, o jovem aspirante a treinador releva a importância da presença de Danilo, ao contrário do que aconteceu na época passada. "A ausência de Danilo na outra eliminatória teve uma grande influência. É importante que ele possa jogar neste ano, para fazer essa vigilância aos movimentos de Firmino e não o deixar receber a bola e virar de forma a encontrar espaços para os seus passes de rutura", explica..De resto, o FC Porto parece nesta época uma equipa mais estabilizada defensivamente do que por alturas da receção ao Liverpool em fevereiro de 2018. Desde logo, a baliza deixou de ser foco de discussão - esse jogo, relembre-se, marcou o fim da controversa titularidade de José Sá que "castigava" Casillas. No entanto, as baixas de Pepe e Herrera (suspensos, viajaram à mesma com a equipa), às quais se juntam as dúvidas em torno da utilização de Alex Telles, podem condicionar a abordagem portista. Da mesma forma que a ausência do lateral esquerdo Robertson no Liverpool condicionará a proposta atacante dos reds..Um fator que pode ajudar o FC Porto a disputar melhor a eliminatória é o facto de a primeira mão se jogar desta vez em Anfield Road. "Desta vez, o FC Porto vai jogar lá sabendo que tem uma segunda mão ainda para jogar em casa. E isso permite outra abordagem", destaca Domingos Paciência. "Talvez beneficie disso, de não ter na cabeça essa ideia de ter de ganhar alguma vantagem na eliminatória. Penso que na época passada isso condicionou um pouco a forma como Sérgio Conceição quis abordar a partida no Dragão, ao entrar a disputar a pressão alta com o Liverpool", lembra Luís Catarino.."Acho que Sérgio neste ano terá opções mais convictas e estará com menos dúvidas sobre como enfrentar o Liverpool", conclui Domingos. Uma coisa é certa: se conseguir anular o fabuloso tridente ofensivo "ficará mais perto de conseguir passar a eliminatória"..Mas essa é a questão para 12 milhões de euros [o prémio pela passagem às meias-finais da Liga dos Campeões].