Foi uma das notícias mais importantes de 2019: um barco de uma ONG alemã, o Sea Watch 3, desafiou a proibição decretada pelo governo italiano e atracou em Lampedusa trazendo a bordo 40 refugiados salvos no Mediterrâneo. A sua capitã, Carola Rackete, de 31 anos, foi presa e acusada de vários crimes, como auxílio à imigração ilegal e "por resistência ou violência contra um navio de guerra", porque o seu navio colidiu, no porto, com uma lancha da polícia italiana durante o tenso período em que a proibição colocava em risco a saúde dos passageiros e tripulantes que estavam há demasiado tempo no mar..Portugal foi um dos poucos países europeus que se ofereceram para receber esses refugiados. Os outros Estados que aceitaram acolher os passageiros do Sea Watch foram o Luxemburgo, a Finlândia, a França e a Alemanha. A maioria foi realojada. Mas os 11 que foram atribuídos à Alemanha ainda estão à espera da transferência..Apesar das promessas que lhes foram feitas e da atenção mediática, cinco meses depois essas pessoas, entre elas uma mulher grávida, vivem em condições desumanas..Lucas Ebai é um jovem camaronês que continua à espera de voar para a Alemanha. Encontramo-lo num campo de refugiados no sul da Itália. Ele conta como foi salvo no momento certo de um pequeno barco de borracha, em risco de naufragar, pela tripulação do Sea Watch, em junho. Seguiu-se uma odisseia de duas semanas, antes que a capitã do navio, Carola Rackete, conseguisse largar a âncora do Sea Watch no porto de Lampedusa, com boa parte dos olhos do mundo postos naquele braço-de-ferro entre a jovem alemã e as ordens do governo italiano. Rackete foi presa em Itália, depois de aportar, causando um clamor na Alemanha. Ebai ainda não sabia, nessa altura, qual seria o seu futuro. "Fiquei simplesmente contente por ter terreno sólido debaixo dos meus pés outra vez", diz ele..Passados apenas alguns dias - e provavelmente graças à enorme cobertura mediática -, o governo federal alemão informou as autoridades italianas de que estava disposto a aceitar um grupo de refugiados. Outros países também - como Portugal, o Luxemburgo, a França e a Finlândia. O acordo de distribuição com esses cinco países foi celebrado em Itália como um grande êxito pelo primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte. Apesar do desafio da ONG alemã, a Itália mantinha a sua política de "portas fechadas", como lhe chamava o então número dois do governo de Roma, Matteo Salvini. E podia mostrar resultados, apoiados pelas sondagens, em que mais de 60% dos inquiridos se opunham à entrada dos refugiados salvos no Mediterrâneo em terras italianas.. "Nenhum médico cuidou das pessoas".Mas o que valem esses acordos assinados? A transferência é um procedimento voluntário e nenhum dos refugiados tem o direito legal de ser aceite por um país. Em Malta, em 23 de setembro, a França e a Alemanha apoiaram um acordo para a distribuição constante de migrantes. A Alemanha, representada pelo Ministro do Interior Horst Seehofer, disse inicialmente que não havia problema em realojar na Alemanha até 25% das pessoas salvas no Mediterrâneo. Mas também deixou claro que essa percentagem só se aplica se os números totais permanecerem baixos..Enquanto aguardavam pelo desfecho das negociações entre a Itália e os países de acolhimento, os refugiados do Sea Watch 3 não foram bem tratados. "Estivemos fechados no hotspot de Messina durante as duas primeiras semanas, não pudemos sair do campo porque éramos diferentes dos outros. Devíamos sair rapidamente do país...", diz uma rapariga da Costa do Marfim, que mais tarde foi realojada em França. Encontramo-la em Estrasburgo. "Os centros hotspot são concebidos para acomodar pessoas durante os poucos dias necessários para completar os procedimentos de identificação. Eles são, portanto, totalmente inadequados para acomodar cidadãos estrangeiros que esperam pelo fim dos procedimentos de redistribuição durante várias semanas e, muitas vezes, vários meses", diz Annapaola Ammirati, da ONG italiana ASGI (associação para os estudos jurídicos da imigração). "Os requerentes de asilo do Sea Watch 3 não receberam assistência jurídica e social. Nenhum médico ou psicólogo cuidou das pessoas e até medicamentos lhes foram negados.".Haidi Sadik, que trabalha para a ONG Sea Watch, conta o destino dos refugiados do Sea Watch 3: "No início de julho, os funcionários franceses interrogaram 12 pessoas e só decidiram aceitar nove, não se sabe porquê." Mas este grupo "francês" foi o mais afortunado, porque pôde viajar para França no início de agosto. Depois, em meados de setembro, Portugal recolocou cinco pessoas, incluindo uma família com uma criança de seis meses. Seguiu-se o Luxemburgo (três pessoas) e a Finlândia com seis. A Alemanha, depois de ter enviado funcionários alemães para interrogar cada um dos candidatos, decidiu acolher 11. Estes são agora os únicos que ficaram para trás, e têm estado à espera do seu transporte há mais de cinco meses, sem fazer ideia de quando, ou mesmo se, isso irá realmente acontecer.. "Dever de solidariedade".O governo de Berlim confirma o óbvio: que Ebai e as outras dez pessoas ainda estão em Itália. Em resposta às perguntas do Investigate Europe, um porta-voz do Ministério Federal do Interior explica: "Até agora, a Itália não transferiu nenhuma destas pessoas para a Alemanha." O governo federal rejeita qualquer responsabilidade: "As transferências ao abrigo do chamado Regulamento de Dublin são efetuadas pelo Estado membro requerente, neste caso a Itália. As autoridades alemãs competentes não dispõem atualmente de uma data de transferência correspondente." O Regulamento de Dublin, por outro lado, afirma: "O Estado membro que decidir examinar um pedido de proteção internacional assume as obrigações inerentes a essa responsabilidade." A inação do governo alemão é uma "situação insustentável", critica Luise Amtsberg, porta-voz do grupo do Partido Verde no Parlamento alemão, responsável pelas políticas de refugiados. "A redistribuição dos refugiados deve ocorrer rapidamente, para salvaguardar o bem-estar das pessoas. O governo federal está ciente da situação precária dos que buscam proteção e deve poupar os afetados a cada dia mais que passam nesta espera indigna." Em junho, quando manifestaram o desejo de receber os refugiados - e a prisão da jovem Carola Rackete abria os noticiários -, as declarações dos governos europeus, incluindo o alemão, eram generosas. "Portugal manifestou disponibilidade para receber cinco pessoas do grupo de 40 migrantes que se encontravam a bordo do Sea Watch 3, que aportou ontem, sexta-feira, no porto italiano de Lampedusa", dizia a nota à comunicação social divulgada pelos ministros da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva. Portugal tomara essa decisão "num espírito de solidariedade europeia" e pelo "dever de solidariedade humanitária". Além disso, o problema obrigava a encontrar "uma solução europeia integrada, estável e permanente para responder ao desafio migratório"..Esta não era, sequer, a primeira vez que Lisboa abria as portas aos refugiados salvos no Mediterrâneo por várias embarcações de ONG. Fê-lo, anteriormente, com os passageiros do Lifeline, Aquarius I, Diciotti, Aquarius II, Sea Watch 3, Alan Kurdi e outros pequenos barcos, tendo acolhido 127 pessoas durante o ano de 2018 e nos primeiros seis meses de 2019..Mas o jogo do passa-culpas entre Berlim e Roma mantém os 11 refugiados do Sea Watch 3 em terra-de-ninguém. No início de novembro, cinco meses depois de ter sido salvo no Mediterrâneo, Ebai e os outros dez refugiados foram levados da Sicília para um campo no continente italiano, perto da cidade de Crotone. Ali vivem, guardados por soldados, numa zona de "transferência" de refugiados que serão enviados no futuro para outro país. A administração do campo impede-os de receber os benefícios sociais que estão garantidos àqueles migrantes que são acolhidos pela Itália. Isso inclui uma quantia em dinheiro, para compras no campo de produtos de primeira necessidade. Os 11 refugiados do Sea Watch, entre eles uma camaronesa grávida de seis meses, não têm acesso sequer a cuidados médicos especializados. Estas pessoas têm apenas ao seu dispor as roupas de verão que a tripulação do Sea Watch lhes deu quando os resgatou do mar. Ebai, que vem sofrendo de dor de dentes há semanas, só recebeu analgésicos - que já não são eficazes..Na zona de transferência do campo de Crotone, Ebai e os dez refugiados já não estão sozinhos. Recentemente, chegaram aqui 50 pessoas que foram resgatadas em setembro e outubro pelo navio norueguês Ocean Viking. Também lhes foi dito que serão realojados na Alemanha. A equipa italiana espera um procedimento mais rápido no futuro: com a recolocação concluída em não mais de quatro semanas, dizem fontes oficiais. Mas, por agora, os refugiados estão à espera - e ninguém sabe por quanto tempo.. Investigate Europe é um projeto iniciado em setembro de 2016 que junta jornalistas de oito países europeus..Este trabalho foi financiado em Portugal pela Fundação Calouste Gulbenkian. Investigate Europe tem o apoio das fundações Cariplo, Milão, Stiftung Hübner und Kennedy, Kassel, Fritt Ord, Oslo, Rudolf Augstein-Stiftung, Hamburgo, GLS, Alemanha e Open Society Initiative for Europe, Barcelona.