"Os dignitários africanos em Portugal no século XVI não eram uma raridade"

Nascida nos Camarões, educada em França e atualmente professora numa universidade inglesa, Olivette Otele é ela própria uma daquelas pessoas entre dois continentes de que fala o seu mais recente livro, intitulado Europeus africanos, uma história por contar.
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A palavra africano-americanos é algo comum de se ouvir, mas africano-europeus ou euro- africanos é uma surpresa para mim. Por que optou por esta palavra ou expressão?
O termo africano-europeus ou europeus africanos também abre a porta para um mundo de interpretações e conversas sobre como o património cultural múltiplo molda as identidades.

No seu livro, os norte-africanos, maioritariamente brancos, estão incluídos na mesma categoria geral dos africanos subsarianos, maioritariamente negros. Mas do ponto de vista histórico os dois grupos tiveram uma receção muito diferente na Europa. Concorda comigo?
O gramático romano norte-africano Cornelius Fronto definiu-se como "africano". Não sabemos se era branco. Septímio Severo parece ter uma pele bronzeada. Uma das principais teses que defendi é que, com o passar do tempo, a cor da pele tornou-se mais importante, exceto para aqueles considerados excecionais (Juan Latino, Jacobus Capitein).

É possível dizer que os romanos eram menos racistas do que os europeus da Renascença em relação aos africanos?
O conceito de raça como o entendemos hoje é um termo bastante moderno. O Império Romano era na natureza em grande parte culturalmente diversificado. A educação, a astúcia e as capacidades de trabalhar em rede de uma pessoa eram qualidades que determinavam o seu lugar na escala social e não a cor da sua pele.

Há uma pintura famosa de um flamengo sobre Lisboa no século XVI que mostra um cavaleiro negro, provavelmente do reino do Congo, um aliado de Portugal. Isso foi realmente uma exceção, ou alguns africanos podiam ter sucesso na Europa nos primeiros tempos das Descobertas?
A ideia de alcançar o sucesso tem de ser inserida num contexto histórico que foi o de Portugal estabelecer ligações com os reinos africanos e tentar construir com eles laços diplomáticos e comerciais. A natureza dos vínculos baseava-se em alguma forma de parceria igualitária nos estágios iniciais do século XVI. Assim, os dignitários africanos em Portugal não eram uma raridade.

Portugal foi uma grande nação traficante de escravos, mas também aboliu a escravatura na parte europeia do império no século XVIII. Isso significa que a discriminação legal radical baseada na raça era mais difícil de ser aceite na Europa?
Os reinos europeus, incluindo Portugal, não queriam ver escravos africanos nas suas cidades no século XVIII. Eles usaram leis que policiavam corpos negros para atingir esse objetivo. Entretanto, queriam continuar a beneficiar do comércio de cativos africanos e da economia das plantações, assim o comércio de escravos continuou ao mesmo tempo.

Pode dizer-nos como é que um africano antes do século XIX poderia ter algum sucesso na Europa em termos de integração?
Depende do país, mas alguns que foram libertados e dotados de alguns meios financeiros puderam criar pequenos negócios. Aqueles que recebiam educação podiam fazer alguns trabalhos administrativos limitados. Os que ficaram com alguma terra, seja por meio de benfeitores ou laços familiares, também poderiam trabalhar na terra. No entanto, a maioria deles não era livre e pertencia às elites europeias, mesmo que por lei a escravatura fosse proibida em algum solo europeu (a lei do solo livre aplicada na Grã-Bretanha, França e Holanda na segunda metade do século XVIII).

Os afro-europeus de hoje ainda estão divididos entre a origem e o local de nascimento ou é cada vez mais fácil harmonizar os dois componentes da expressão?
A divisão é uma classificação europeia. Em França, trata-se de um francês de origem X, Y ou Z. No Reino Unido é um britânico negro, um termo que se encontra no censo, por isso é um termo legal. Essas classificações geralmente abrangem uma hierarquia racial que os coloca na base da sociedade. Resolvi inverter as coisas, aceitar a classificação para demonstrar que não precisa de ser apagada e não precisa ser percecionada negativamente.

Nascida nos Camarões e a viver no Reino Unido, como é que vê a influência africana na sociedade britânica?
Aliás, eu também sou francesa! A influência africana na sociedade britânica é muito menos controversa. O racismo existe no Reino Unido, mas a importância de África na construção do Império Britânico e da Commonwealth é amplamente reconhecida.

Pensa que os europeus têm uma ideia da contribuição de África para a humanidade?
Sim e não. Desde os vestígios dos primeiros seres humanos no planeta encontrados em África, à contribuição forçada dos cativos africanos para a economia mundial a partir do século XV, até aos recursos naturais africanos, existe um vasto material arqueológico e arquivístico presente nos Arquivos Nacionais Europeus que documenta essas histórias. O problema é que muitos países europeus resistiram durante séculos ao ensino dessas histórias e favoreceram as narrativas nacionais que os postulam como conquistadores que salvaram africanos. Portanto, há uma amnésia histórica e coletiva parcial que precisa de ser abordada.

leonidio.ferreira@dn.pt

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