Os diários de viagem de Albert Einstein

Conhecem-se seis diários de viagem escritos por<strong> Albert Einstein</strong>. Este é o mais antigo, relativo a uma viagem ao Extremo-Oriente, Palestina e Espanha em 1922-1923. Na excelente introdução histórica escrita por<strong> Ze'ev Rosenkranz</strong> a este livro, é explicado que foi em Xangai, onde o cientista estava em meados de novembro de 1922, que recebeu a notícia de que ganhara o Nobel da Física. Curiosamente, não fez referência a tal. Aqui ficam as notas sobre os dias passados em Hong Kong e Xangai, reveladoras de um homem genial, já famoso, mas que não deixa de ser um europeu de há cem anos, com todos os preconceitos da sua época, neste caso sobre a China.
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Dia 10. Na manhã do dia 9 chegámos a Hong Kong. É a paisagem mais bonita que vi até agora em toda a viagem.

Ilha montanhosa estendida ao lado do continente igualmente montanhoso. Entre os dois, o porto. Muitas pequenas ilhotas íngremes. O conjunto parece uma área semiafogada do sopé dos Alpes. A cidade é como um terraço no sopé de uma montanha levemente inclinada, com cerca de 500 metros de altura. Ar agradavelmente fresco.

Agradecendo, declinei o convite para a recepção pela comunidade judaica.

No entanto, dois empresários judeus passaram todo o dia connosco. Logo pela manhã, iniciámos um passeio de automóvel pela ilha. Vistas panorâmicas para o mar, baías semelhantes a fiordes e encostas de montanhas com uma variedade e magnificência inesgotáveis. No caminho, almoçámos num hotel de luxo de estilo de aparência americana, onde os nossos dois guias não apenas conversaram comigo animadamente sobre o país e a ciência, mas também revelaram a sua grande afinidade pelos prazeres mundanos. Na viagem de volta, vimos uma aldeia de pescadores chineses repleta de barcos à vela, um funeral chinês aparentemente muito alegre e - pessoas desgraçadas, homens e mulheres, que partem pedras diariamente e têm de trabalhar por cinco centavos por dia. Devido à sua fecundidade, os chineses são, assim, severamente punidos por uma insensível máquina económica. Acho que eles mal percebem isso na sua obtusidade, mas é triste ver. Aliás, eles realizaram supostamente uma bem-sucedida greve com uma organização particularmente boa, há algum tempo. À tarde, visitámos a sede do clube judaico, que fica num jardim exuberante numa elevação bastante alta, com uma vista magnífica da cidade e do porto. Existem supostamente apenas 120 judeus lá, principalmente de origem árabe, cuja religiosidade parece ter cristalizado nos aspectos formais mais do que no caso dos judeus russo-europeus. Na sede do clube, duas mulheres socializaram connosco, a esposa de um dos nossos anfitriões e a sua irmã. Agora estou convencido de que a raça judaica manteve a sua pureza nos últimos 1500 anos, uma vez que os judeus das terras do Eufrates e do Tigre são muito semelhantes aos nossos. O sentido de pertença também é bastante forte. Também fomos de carro, em grupo, até ao cume da montanha, aos pés da qual fica a cidade (acessível por teleférico; com os chineses separados dos europeus).

No topo, uma vista grandiosa do porto, das montanhas da ilha e do mar. A visão das muitas pequenas ilhotas surgindo abruptamente do mar lembra o mar de névoa no sopé dos Alpes. À noite, houve uma tempestade repentina que arrancou bruscamente o meu chapéu na rua. Tive de correr atrás dele com todas as minhas forças para o recuperar.

Esta manhã, visitei, com a Elsa, o bairro chinês no lado continental. Gente trabalhadora, imunda e letárgica. Casas muito apertadas, varandas como colmeias, tudo construções empacotadas e monótonas. Atrás do porto, nada além de bares em frente aos quais os chineses não se sentam em bancos para comer, mas se agacham como os europeus quando fazem as suas necessidades numa mata frondosa. Tudo isso ocorre silenciosa e discretamente. Até as crianças são desprovidas de espírito e parecem obtusas. Seria uma pena se esses chineses suplantassem todas as outras raças. Para pessoas como nós, esse mero pensamento é indescritivelmente triste. Ontem à noite visitaram-me três professores portugueses do ensino básico, que me disseram que é impossível os chineses serem treinados para pensar logicamente e que, especificamente, não têm talento para a matemática. Percebi que é pequena a diferença entre homens e mulheres; não entendo que tipo de atracção fatal as mulheres chinesas exercem para cativar os seus homens a ponto de estes serem incapazes de se defender contra a formidável bênção da fertilidade. Às 11h00, o Kitano Maru partiu, rompendo o mar verde brilhante entre montanhas verdes da ilha que eram deliciosas em forma e cor, mas carecas, ou seja, sem crescimento de árvores. Supõe-se que a actual flora exuberante de Hong Kong tenha sido plantada pelos ingleses. Eles têm uma compreensão admirável de governança. O policiamento é feito por indianos morenos de grande estatura que foram importados, nunca sendo usados chineses. Para estes últimos, os ingleses estabeleceram uma universidade adequada para agarrar os que prosperaram mais perto deles. Quem pode imitá-los nisso? Pobres europeus continentais, vocês não entendem como controlar os movimentos nacionalistas de oposição por meio da tolerância.

Dia 11. À noite, maravilhosa fosforescência marinha. As cristas das ondas do mar brilhavam azuladas até onde se podia ver.

Dia 14. No dia 13, por volta das 10h00, chegada a Xangai. Viagem rio acima ao longo de margens planas, pitorescas e iluminadas de verde-amarelado. Despedida dos dois oficiais suíços, o de Berna que tão gentilmente consertou o meu cachimbo, bem como o jovem ex-oficial alemão chauvinista, mas de resto boa pessoa. Em Xangai, fomos recebidos no navio por Inagaki e esposa, os nossos queridos acompanhantes em Xangai e Kobe, e pelo cônsul alemão, e pelo Sr. e Sr.ª Pfister. Para começar, jornalistas, um respeitável bando de japoneses e americanos que fizeram as perguntas do costume.

De seguida, com os Inagaki e dois chineses (um jornalista e secretário de associações cristãs chinesas), fomos conduzidos a um restaurante chinês. Durante a refeição observámos pela janela um funeral chinês ruidoso e colorido - uma cena bárbara para os nossos gostos, com uma aparência quase cómica. A comida, extremamente sofisticada, era interminável. Pesca-se constantemente com pauzinhos de pequenas tigelas comuns colocadas sobre a mesa em grande número. As minhas entranhas reagiram de forma bastante temperamental. Já era tarde quando cheguei, por volta das 17h00, ao porto seguro (para ser entendido literalmente) dos simpáticos Pfister. Após a refeição, passeei pelo bairro chinês com um tempo esplêndido. Ruas cada vez mais estreitas, fervilhantes de transeuntes, riquexós, cobertas de sujidade de todo o tipo, um fedor no ar de uma variedade sem fim. Impressão de uma luta medonha pela sobrevivência por parte de pessoas pacatas e, na maior parte, de aparência letárgica e negligenciada. Além da rua, oficinas barulhentas e lojas abertas, numa grande algazarra, mas sem haver brigas em nenhum lugar. Visitámos um teatro, em cada piso uma apresentação diferente dos comediantes. Público sempre apreciador, muito encantado, as mais diversas pessoas com crianças pequenas. Uma sujeira decente em todos os lugares.

Por dentro e por fora, no meio da terrível agitação, rostos bastante felizes. Mesmo aqueles que estavam obrigados a trabalhar como cavalos nunca dão a impressão de sofrimento consciente. Uma nação peculiar semelhante a um rebanho, frequentemente com uma barriga respeitável, sempre com os nervos em bom estado, parecendo muitas vezes mais autómatos do que humanos. Às vezes curiosidade sorridente. Com visitantes europeus como nós, olhares mútuos cómicos - Elsa particularmente imponente com a sua lorgnette com aspecto agressivo.

Em seguida, viagem de carro à espaçosa casa de campo dos Pfister, o já elogiado porto seguro. Hora do chá caseiro. Depois veio uma delegação de cerca de oito dignitários judeus com um venerável rabino, sendo a comunicação muito difícil. De seguida, viagem de carro com os Inagaki por ruas escuras até à casa de um rico pintor chinês para um jantar chinês. Residência escura por fora com um muro alto e sombrio. No interior, salões festivamente iluminados em torno de um pátio romântico, decorado com um pitoresco lago e jardim. Os salões adornados com magníficos e autênticos retratos chineses do anfitrião e com objectos de arte antigos coleccionados com amor. Antes da refeição, juntou-se todo o grupo do jantar, incluindo o anfitrião, nós, os Inagaki, os Pfister, um chinês que falava alemão, um casal parente do anfitrião com uma filhinha bonita e autoconfiante, com cerca de dez anos, recitando docemente em alemão e em chinês, o reitor da Universidade de Xangai e alguns professores dessa instituição. A refeição foi interminável, muito extravagante, inconcebível para um europeu, por muita indulgência que tenha, com sentimentais discursos traduzidos de um lado para o outro por Inagaki, um deles por mim. O anfitrião tinha um rosto extraordinariamente belo, semelhante ao de Haldane. Na parede havia um maravilhoso auto-retrato dele, lapidado. A mãe da filhinha que recitava fazia o papel de anfitriã conduzindo a conversa em alemão de uma maneira bastante divertida e habilidosa. Às 21h30 partimos com os Inagaki para o Clube Japonês, onde fomos recebidos por cerca de uma centena de japoneses, a maioria jovens, de uma forma simpaticamente informal, modesta e alegre. A seguir, voltei para o navio. Lá, tinha uma outra visita de um interessante e simpático engenheiro inglês. Finalmente, cama.

Hoje após o pequeno-almoço, viagem de carro até um curioso templo com muitos pátios e uma linda torre chinesa, actualmente usada como quartel. Ao lado, uma aldeia muito divertida, inteiramente chinesa com becos muito estreitos e casinhas que abrem para a frente, pequenas lojas ou oficinas por todo o lado. O olhar recíproco ainda mais cómico do que na cidade. As crianças oscilam entre a curiosidade e o receio. Quase sempre, impressão alegre juntamente com sujeira e fedor; vou-me lembrar dela com frequência e com prazer. Olhámos o templo com atenção As pessoas da vizinhança parecem indiferentes à beleza do sítio. Arquitectura e decoração de interiores (Budas maiores do que em tamanho real e outras figuras) criam um efeito conjunto estranho que transmite uma grande impressão artística global. Elevado pensamento budista no meio de figuras aparentemente barrocas de uma superstição abstrusa (o que é meio simbólico).

À tarde, 15h00. Partida.

Os Diários de Viagem de Albert Einstein - Extremo-Oriente, palestina e Espanha 1922-1923
Editados por Ze"ev Rosenkranz
Gradiva
25 euros
425 páginas

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