Os colaboracionistas e o Trump
As razões para o aparecimento de Trumps, Bolsonaros, Salvinis, Le Pens e quejandos são muitas, variam de país para país e têm contextos específicos. Não sou capaz de as enumerar todas, não sei outras tantas e tenho hoje muitas dúvidas sobre algumas que já tive por certas.
Parece-me claro que pessoas que percebem que os seus filhos vão viver pior do que elas, que vivem em comunidades com muita desigualdade, que sentem a deterioração dos serviços públicos, que convivem ou percecionam corrupção estarão mais propensas a dar ouvidos a quem aparece com um conjunto de soluções aparentemente fáceis para problemas complexos.
Não é, porém, só em países com problemas destes, maiores ou menores, que esses fenómenos acontecem. Este vírus quer acabar com a democracia liberal, mas é, infelizmente, muito democrático.
Há, pelo menos, algo de comum a todos os locais onde aparecem estes vendedores de banha da cobra, sejam países mais ou menos prósperos, com mais ou menos imigração, com maior ou menor desigualdade: o caldo comunicacional.
Existem os propagandistas oficiais ou oficiosos destes indivíduos. É evidente que, no caso de Portugal, Rui Ramos e Jaime Nogueira Pinto, só para dar dois exemplos, são militantes ativos da causa trumpista e não fazem por esconder a sua simpatia pelo trumpzito local. Têm uma vantagem: são claros. Não fazem como tantos dissimulados que diziam e escreviam que lhes era igual que no Brasil ganhasse Bolsonaro ou Haddad ou os que agora criticavam Trump para na mesma linha fazer o mesmo com Biden.
Espero não ver estes propagandistas do populismo furioso a renegar agora Trump. Seria uma cena tão patética quanto a de Mike Pence ou de alguns republicanos americanos que foi necessário terem visto uma multidão incitada por Trump a invadir o Capitólio para perceberem o tipo com quem estavam a lidar.
Não, não era mera retórica. Não, não eram só frases para mobilizar a base de apoio. Trump é bem mais honesto do que os seus propagandistas americanos e os que vendem as suas políticas pelo mundo: disse ao que vinha e fez exatamente aquilo a que se propôs. Aliás, não sei o que me desagrada mais, se a defesa de um tipo como Trump se a desonestidade dos argumentos de quem o apoia de facto.
Os maiores e melhores apoiantes destes populistas são os vendedores de desgraças. Basta ver aqui em Portugal. É vê-los em jornais e televisões a explicar que o pais é um mar de corrupção, que as nossas instituições estão minadas, que os políticos são todos um bando de ladrões. São os mesmos que glorificam os justiceiros, que acham que o conceito de Estado de direito é uma treta, que a inversão do ónus da prova é apenas mais uma medida possível para nos salvar dos bandidos ou que isso da presunção de inocência é só para os ladrões se safarem da justa pena, a que eles prescrevem, claro.
A maioria sabe que o que conta não é verdade e estou firmemente convencido de que outros tantos não ignoram que as medidas que advogam são insustentáveis num Estado de direito, mas a coisa tornou-se para vários um modo de vida. Explicar pela enésima vez que ao atirarem para todo lado ajudam os verdadeiros corruptos e demais bandidos já se percebeu ser perda de tempo.
Há os que se inventam e os que vão buscar inspiração a gente da política. Políticos que têm como objetivo polarizar o debate de uma forma radical. E, que fique claro, não estou a referir-me, neste momento, ao Chega. Há uma franja de políticos do PS e do PSD (sobretudo, neste momento, deste) que não sendo relevantes no partido neste ciclo político não perdem oportunidade para tratar os outros partidos como entidades corruptas e sinistras - e não estão a dirigir-se ao Chega, que aliás tratam com carinho -, exprimir um ódio cego por opositores e em gritar o estertor do regime.
Temos ainda os lutadores contra o politicamente correto. Os que erigiram a liberdade de expressão a valor acima de qualquer outro e que legitimam os discursos antiminorias, antidireitos fundamentais e antidemocracia. Não, esses discursos não são admissíveis em democracia e sim a democracia tem de ser defendida desses discursos. Estava capaz de apostar que naquele bando de energúmenos americanos não havia um que não se considere um lutador contra o politicamente correto.
Adivinho o discurso de muita desta gente perante o que se passou na quarta-feira em Washington. A roupa vai ficar às tirinhas tal a força com que vão rasgar as vestes: lamentável, pouca vergonha, ataque à democracia. Não sei se são inconscientes ou simplesmente desonestos, mas a verdade é que estão a ajudar a que uma cena daquelas também aconteça no nosso país.