Os cinco ódios e as cinco paixões de estimação de Bolsonaro

Como as enérgicas opiniões do presidente e do seu grupo de apoiantes contribuem para aquecer o já escaldante clima de Fla-Flu político, social e ideológico do Brasil na ressaca da Operação Lava-Jato e do <em>impeachment </em>de Dilma Rousseff.
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Na sequência da Operação Lava-Jato, da crise económica, do impeachment de Dilma Rousseff e da prisão de Lula da Silva, o deputado de opiniões radicais e temperamento explosivo Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil. Se antes de ele entrar em cena o país já estava em clima de Fla-Flu político, social e ideológico, com ele como protagonista metade do país passa os dias a chamar a outra de "fascista!" e a receber um "comunista, vai pra Cuba!" de resposta.

No meio da gritaria, Bolsonaro e o que se convencionou chamar de bolsonarismo trouxeram para o calor da discussão os seus ódios e paixões de estimação - sendo que alguns deles eram desconhecidos da maioria da população até à reta final da campanha de outubro do ano passado. Eis então alguns dos nomes, ou ideias, sem ordem pré-estabelecida, que se tornaram parte do dia-a-dia das discussões de botequim e de rede social.

ÓDIOS

Paulo Freire

O ódio original de Bolsonaro e do bolsonarismo é a Karl Marx, claro, mas transfere-se para o marxista italiano Antonio Gramsci por ter sido ele o defensor da teoria da hegemonia cultural da esquerda - um dos principais cavalos de batalha do filósofo autodidata Olavo de Carvalho [ver "Paixões"].

E de Gramsci transita para Paulo Freire, um educador brasileiro de referência no mundo, que de intocável passou a execrável com a ascensão da extrema-direita ao poder.

Freire, autor do universalmente aclamado "Pedagogia do Oprimido", em que defende o papel do estudante como cocriador de conhecimento, é considerado pelo bolsonarismo de ser o culpado pelo suposto esquerdismo do ambiente académico brasileiro.

"Se eleito, vou entrar no ministério da educação e tirar o Paulo Freire de lá com um lança-chamas", prometeu Bolsonaro em campanha.

O "lança-chamas" metafórico do presidente era Ricardo Vélez, a sua primeira escolha para ministro da educação, que pretendia filmar as crianças brasileiras a cantar o hino e a rematar com o slogan presidencial "o Brasil acima de tudo, Deus acima de todos". Entretanto demitido, foi substituído no cargo por outro "lança-chamas", o ministro Abraham Weintraub, que determinou cortes significativos na educação.

Os estudantes que foram para as ruas protestar em todos os estados do Brasil foram chamados de "idiotas úteis" por Bolsonaro.

Lula

Principal referência da esquerda brasileira e até sul-americana, presidente por oito anos com taxa de aprovação à saída do Planalto superior a 80% e líder de todos os cenários eleitorais, mesmo preso, às vésperas das eleições que Jair Bolsonaro acabaria por vencer, Lula é um ódio natural e óbvio do bolsonarismo.

O presidente disse mesmo, em entrevista recente, não ter compaixão pelo antigo sindicalista. Um comentário até meigo, se comparado com o do seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, para quem uma saída de Lula da prisão para assistir ao velório do neto Arthur, de sete anos, o faria ficar "posando de coitado".

"Lula é preso comum e deveria estar numa prisão comum. Quando o parente de outro preso morrer ele também será escoltado pela polícia para o enterro? Absurdo até se cogitar isso, só deixa o larápio em voga posando de coitado".

E bolsonaristas das redes sociais tornaram viral uma imagem de Lula a sorrir para um polícia ao desembarcar para assistir ao velório - esse sorriso, concluiam, era a prova de que o político, de tão odioso, era insensível até à morte do neto.

John Maynard Keynes

Até ao início da campanha eleitoral do ano passado, Bolsonaro era, como qualquer adepto fervoroso do regime militar brasileiro que se preze, um estadista. Mais: como militar e político, só recebeu toda a vida salários pagos pelo estado. Mais ainda: em 2017, votou contra a reforma da previdência que diminuiria a pressão de milhares de milhões de reais sobre o estado.

Mas dada a onda conservadora nos comportamentos e liberal na economia que se gerou em redor da sua campanha, transformou-se. Mudou estrategicamente de partido - para o Partido Social... Liberal - e convidou Paulo Guedes, um tubarão dos mercados, para ministro da economia.

Guedes, defensor de um estado microscópico, opõe-se energicamente a John Maynard Keynes, o economista que admitia intervenções estatais para regular a economia.

E Bolsonaro, que por reconhecer não entender de economia tem em Guedes o seu guru na área, chama agora de anti-patriotas os brasileiros que não são a favor da reforma da previdência - a mesma que ele rejeitou há menos de dois anos.

De tão anti-keynesiano que se tornou, perante empresários repete sempre que o lema do seu governo é não atrapalhar as empresas. E em nome do estado mínimo até declarou guerra às multas - acabou com os radares nas estradas e com a obrigação das crianças usarem cadeirinhas nos carros.

Jean Wyllys

Se Paulo Freire é o inimigo na educação, Lula na política e Keynes na economia, Jean Wyllys é o maior ódio no plano dos costumes para Jair Bolsonaro. Para começar é do PSOL, o partido mais à esquerda do parlamento brasileiro, depois é gay, grupo contra o qual o ex-capitão tanto vociferou, e, finalmente, cuspiu na cara do hoje presidente após um insulto homofóbico durante a votação do impeachment de Dilma.

Pior: argumentando estar a ser ameaçado de morte, anda exilado pela Europa a fazer campanha contra o presidente e o governo.

"Grande dia!", escreveu Bolsonaro no Twitter horas depois de Wyllys anunciar a sua decisão de abandonar o pais por conta das tais ameaças. "Vá com Deus e seja feliz!", acrescentou o filho Carlos.

O guru bolsonarista Olavo de Carvalho [ver Paixões] foi mais longe em vídeo gravado da sua residência, em Richmond, Estados Unidos. "Wyllys, mesmo que eu fosse um homossexual descarado, acha que eu ia comer você, você já se olhou no espelho, que ilusão, você acha que ia ficar atraído pelo seu cú peludo?". A seu lado, um outro filho do presidente, o senador investigado por corrupção Flávio, gargalhava.

Bill De Blasio

Ao contrário dos outros, que partem dele, o ódio de Jair Bolsonaro por Nova Iorque é sobretudo uma reação ao ódio da principal cidade dos Estados Unidos pelo presidente americano.

O mayor da cidade, Bill De Blasio, democrata e adversário de Donald Trump [ver Paixões], verbalizou essa relação a propósito da cancelada visita de Bolsonaro ao Museu de História Natural para receber um prémio de empresários brasileiros sediados nos Estados Unidos.

"Se quer invadir a nossa cidade e gabar-se de destruir o meio ambiente, ou falar sobre como é um "homofóbico orgulhoso', saiba então que os nova-iorquinos vão criticá-lo pelas suas porcarias". Sobre as acusações de que estaria sendo "radical", respondeu: "Se nos erguermos contra a ideologia destrutiva dele é ser radical, então somos orgulhosos radicais".

Bolsonaro acabaria por receber o prémio em Dallas, vestir chapéu de cowboy e receber um cinto com as suas iniciais na fivela - uma ideia mais aproximada do seu sonho americano. Pelo meio, De Blasio foi alvo de uma previsível campanha online das claques bolsonaristas.

Além do prefeito, outro símbolo da cidade com péssima relação com a direita em geral, logo com o bolsonarismo em particular, é o The New York Times, por tradição apoiante do Partido Democrata, ambientalista, anti-homofobia, feminista, anti-armas, anti-pena de morte, pró-aborto e globalista.

PAIXÕES

Donald Trump

É a principal referência de Bolsonaro no mundo. Em primeiro lugar porque, excluído esse pormenor chamado Nova Iorque, o presidente do Brasil é um americanófilo assumido - saúda até a bandeira americana com uma continência. E depois porque partilha com o atual inquilino da Casa Branca valores e experiências - afinal, ambos se elegeram contra todas as expectativas e com um discurso supostamente anti-establishment.

Ao contrário dos seus antecessores, Bolsonaro não começou as visitas oficiais pela Casa Rosada, na Argentina, e sim pela Casa Branca, em Washington, para oferecer aos Estados Unidos a base espacial de Alcântara, deixar de exigir vistos aos cidadãos norte-americanos mesmo sem reciprocidade e, sobretudo, afagar Trump. Em troca, a diplomacia americana ajudará o Brasil a entrar na OCDE.

De tão íntimo com o homólogo americano, Bolsonaro concordou até com o muro na fronteira com o México e admitiu que imigrantes brasileiros possam ser expulsos do país uma vez que "a maioria está lá com más intenções e são uma vergonha para o Brasil".

Brilhante Ustra

Nem Tolstoi, nem Dostoievski, nem Shakespeare, nem Cervantes, nem Pessoa, nem Machado de Assis: é Brilhante Ustra que Bolsonaro tem à cabeceira, segundo revelou em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura.

"Verdade Sufocada - A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça" é o ponto de vista do mais célebre dos torturadores da ditadura militar, primeiro condenado por tortura e sequestro por ações nesse período, em 2008, líder da OBAN, ou como ele chamava "a sucursal do inferno", e depois do DOI-CODI, equivalente à portuguesa PIDE.

Segundo a Comissão da Verdade, instituída para investigar violações aos direitos humanos no país de 1946 a 1988, Ustra não participava diretamente nos afogamentos, nos espancamentos, nos tratamentos de choque e nas torturas conhecidas como pau-de-arara e cadeira do dragão. Mas chefiava. E ainda se encarregava dos "passeios" - levava o torturado até ao cadáver de um detido e dizia que ele acabaria da mesma forma, se não denunciasse.

No total, estimou a comissão, foram mortas 502 pessoas no escritório de São Paulo do DOI-CODI mas como só 47 corpos foram encontrados, Ustra é suspeito de ter ocultado os restantes corpos em valas comuns.

Foi a Ustra, que teria torturado Dilma, que Bolsonaro dedicou o voto pela destituição da então presidente, em 2015.

Olavo de Carvalho

Ex-astrólogo e ex-muçulmano, Olavo de Carvalho escreve best sellers e leciona cursos de filosofia online, mesmo sem ter formação universitária, da sua casa em Richmond, Estados Unidos, onde se refugiou depois da ascensão do PT ao poder, e é o guru intelectual de Bolsonaro.

Defende que o papel da nova direita, da qual se intitula o ideólogo no Brasil, é combater o marxismo e uma conspiração mundial, o globalismo, liderada ao longo dos tempos por gente tão díspar como Gramsci [ver Ódios] ou a multimilionária família Rockefeller.

Esse globalismo, acredita ele, serve-se da eliminação de automóveis com motoristas e de dinheiro em papel para controlar, numa fonte central, os horários, os itinerários e as transações financeiras de toda a gente.

Fumador inveterado, colecionador de armas e viciado no uso de palavrões [ver Jean Wyllys, em Ódios], lançou a teoria, muito disseminada no Brasil, de que o nazismo é de esquerda.

Além de Bolsonaro, o governo está repleto de influenciados pelo guru. Só ministros são dois: o das Relações Exteriores, muito criticado, e o da Educação, que já caiu.

Em paralelo, Olavo persegue os militares que acompanham Bolsonaro, especialmente o vice-presidente da República general Hamilton Mourão, com ataques virulentos ao seu histórico, à sua ação, às suas declarações e até ao seu cabelo.

No meio desse tiroteio, Bolsonaro ficou do lado do guru.

MC Reaça

"Tinha o sonho de mudar o país. Apostou no meu nome por meio de seu grande talento. Será lembrado pelo dom, pela humildade e por seu amor pelo Brasil. Que Deus o conforte juntamente com seus familiares e amigos", disse Jair Bolsonaro, via Twitter, após a morte de MC Reaça, músico funk e eleitor do presidente.

MC Reaça conseguiu assim um feito de que nem Beth Carvalho, a rainha do samba recentemente falecida, nem Chico Buarque, o escritor (e não só) recentemente galardoado com o Prémio Camões, nem Kleber Mendonça e Karim Aïnouz, os cineastas recentemente premiados em Cannes, se podem orgulhar: foi o único artista a merecer referência elogiosa de Bolsonaro.

Mas o caso tornou-se controverso, menos pelos gostos do presidente e mais porque o "funkeiro" em causa se suicidou depois de espancar a amante - ainda hospitalizada.

O seu único hit, tocado nos comícios de Bolsonaro, tinha o seguinte refrão: "Dou para a CUT [central sindical conotada com o PT] pão com mortadela e para as feministas ração na tigela. As 'minas' de direita são as "top" mais bela enquanto as de esquerda tem mais pelo que cadela".

Neymar

"Olá Bibi e Bolsonaro, obrigado por nos convidarem: Israel estamos chegando!". A frase é do futebolista Neymar e do seu amigo e campeão de surf Gabriel Medina num vídeo numa rede social em resposta a outro vídeo do presidente brasileiro e do primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu - "Bibi" para Ney e Medina.

Esta estranha troca de mensagens é a prova da relação próxima entre o clã Neymar - o seu pai seria recebido dias depois no Planalto pelo presidente e pelo ministro da economia Paulo Guedes para discutir problemas com o fisco - e o clã Bolsonaro.

A relação pareceu ainda mais íntima quando, mesmo em vésperas de viagem oficial às 6h00 para a Argentina, o chefe de estado resolveu assistir a um jogo noturno do Brasil só para no final dar um abraço de solidariedade ao atleta - ele acabara de ser acusado de violação e agressão à modelo Najila Mendes.

Neymar é, portanto, a última paixão de Bolsonaro.

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