Estima-se que na Líbia estejam presos quase seis mil homens, mulheres e crianças nos centros de detenção de migrantes. "A Líbia não pode ser considerada um local seguro para efeitos de desembarque após salvamento ou intercetação no mar, tendo em conta o elevado risco de as pessoas de regresso correrem o risco de ser sujeitas a graves violações e a abusos dos direitos humanos, incluindo a detenção arbitrária prolongada em condições desumanas, a tortura e outros maus-tratos, homicídios, violações e outras formas de violência sexual, trabalho forçado, extorsão e exploração", lê-se no mais recente relatório das Nações Unidas sobre os migrantes e refugiados naquele país do norte de África. Os Médicos sem Fronteiras advogam a libertação de todos estes prisioneiros cujo "crime" foi tentar chegar à Europa. Até agora, 455 pessoas nessa situação conseguiram sair da Líbia..Qual é a principal prioridade dos Médicos sem Fronteiras na Líbia? De momento, é o impacto generalizado do conflito no mês passado em toda a população civil de Tripoli, incluindo as 60 mil pessoas que foram deslocadas das suas casas, mais de 400 mortas e mais de duas mil feridas. Estamos em estreito contacto com as autoridades civis líbias no que respeita à resposta de socorro e a toda a assistência que pudermos dar às famílias deslocadas. Mas na realidade a nossa prioridade em termos de necessidade premente continua a ser os refugiados e migrantes, em concreto aqueles que estão em centros de detenção. Neste momento há mais de três mil pessoas (homens, mulheres e crianças) em centros de detenção, perto do conflito. Ao longo do mês passado ficou claro que estas pessoas estão em situação especial de alto risco pelo facto de estarem presas e de serem migrantes e refugiadas. Houve centros de detenção atacados diretamente por grupos armados, tendo resultado na morte e no ferimento de detidos. Outros centros de detenção estão perto da linha de fogo e também vimos nesta semana um ataque aéreo que atingiu alvos a 80 metros do centro de detenção de Tajoura. Os estilhaços da explosão perfuraram o telhado da ala das mulheres e quase atingiram um bebé..As mulheres estavam fechadas nas celas e às escuras. Mesmo que quisessem procurar um abrigo não o podiam fazer. Os centros de detenção são mais inseguros do que eram antes. É difícil imaginar quão aterrorizados devem estar os detidos nesta situação. Sabem que não podem fugir, que não têm para onde ir, não sabem o que lhes vai acontecer, ou seja, não veem a luz ao fundo do túnel. Porque já passaram por isto e não sabem como sair dali..O que podem fazer os Médicos sem Fronteiras nesse cenário? Temos trabalhado nos centros de detenção nos últimos dois anos e levado cuidados médicos primários, incluindo a grávidas, ou tratar doenças como a tuberculose, em resultado das más condições em que vivem. E continuamos a prestar estes cuidados durante este período de conflito. Continuamos a apoiar os esforços para instalar infraestruturas sanitárias e em alguns centros fornecemos comida. Fora dos centros, visitamos abrigos de pessoas deslocadas, a maior parte da Líbia, e damos material médico aos hospitais em Tripoli para poderem tratar os feridos em resultado do conflito..É muita atividade. A equipa é formada por quantas pessoas? Somos cem. A maioria é líbia, médicos líbios, pessoas comprometidas em melhorar a vida dos afetados pelo conflito..Como tem sido a relação com o governo líbio e com os rebeldes do Exército Nacional Líbio? É um ambiente extremamente difícil para todos os atores humanitários no que respeita a um enorme conjunto de desafios, mas o que é mais preocupante é o pessoal médico ser diretamente visado durante as suas atividades de salvar vidas. Há um par de dias, mais uma ambulância foi atingida, tendo resultado em ferimentos nas pessoas que nela seguiam. As nossas equipas continuam a atuar em terrenos em conflito, e fazer das equipas humanitárias e médicas alvo é absolutamente intolerável.. Um relato da enfermeira Sandra Miller no terreno lembra-nos de que a saúde mental dos refugiados e migrantes também está em jogo. Em que medida podem vocês fazer a diferença? Uma das carências que se agravou foi na saúde mental. Vimos uma deterioração na saúde mental nos detidos com o agravar dos sentimentos de desespero e de aflição, a impossibilidade de fazerem algo para melhorar a situação e a aparente inação por parte de outros para tirá-los daquela situação. Obviamente é extremamente difícil. Não podemos prometer que somos capazes de resolver as situações. Há muito que advogamos o fim da detenção e alertamos para os perigos deste sistema para os refugiados e migrantes. As preocupações das pessoas traduzem-se num nível de desespero a que nunca tínhamos assistido. O conflito agudizou-se e tornou claro quão vulneráveis estão e quão pequena tem sido a resposta para resolver a situação. É claramente da responsabilidade dos governos de todo o mundo agir agora e apresentar soluções para as pessoas que se mantêm nesta armadilha que são os centros de detenção. Devido ao papel da União Europeia e dos Estados membros em aplacar o fluxo da migração através do Mediterrâneo Central, muita gente que vai parar aos centros de detenção foi intercetada no mar e devolvida à costa líbia. Quando isso acontece os centros de detenção são único sítio para onde podem ir. É uma viagem só com bilhete de ida, sem saída. Não há sistema legal, não há uma abordagem formal para que as pessoas possam escapar. E a UE e os seus Estados têm apoiado de forma explícita esta estratégia para assegurar que as fronteiras externas comecem na costa da Líbia. Tendo isso presente, é óbvio que a responsabilidade pelo extremo sofrimento, pelas más condições e pelo perigo que estão a viver recai nos líderes europeus..Como ajudar estas pessoas? Como temos visto nos últimos meses, as pessoas têm sido transferidas de centro de detenção para centro de detenção na tentativa de que fiquem a uns quilómetros do conflito. Mas nenhum destes locais é seguro. O que pedimos aos países é que se voluntariem para levar estas pessoas para um lugar seguro e acabar com este sofrimento..Quanto às políticas de asilo e migração europeias, o que advogam os Médicos sem Fronteiras? Tem de se reconsiderar o equilíbrio atual em que só se aumenta o ónus em alguns países, onde se agravam as condições de vida e onde as pessoas ficam presas durante anos. Estas políticas estimulam um ciclo que se perpetua, incluindo a repressão em todos os meios de busca e salvamento no Mediterrâneo. Até a missão naval da UE, a Operação Sophia, foi reduzida e neste momento não tem quaisquer navios. A UE, neste momento, não tem capacidade para salvar vidas, os únicos navios são os da guarda costeira líbia, que vão levar as pessoas de volta para o meio do perigo e para as más condições de detenção. Isto para não falar nas ações punitivas levadas a cabo por alguns governos europeus às organizações que tentam ter meios de busca e salvamento no Mediterrâneo Central, como os Médicos sem Fronteiras.