O tema aparece em títulos de jornais para dar notícias de pessoas felizes: "Kim Kardashian e Kanye West vão ter outro filho por barriga de aluguer", "Jimmy Fallon e a mulher dão as boas-vindas à segunda filha por barriga de aluguer", "Cristiano Ronaldo voltou a recorrer a uma barriga de aluguer" e, há menos de uma semana, "Paula Amorim recorre a barriga de aluguer para ser mãe aos 49 anos". Nos últimos dias o nascimento de bebés por gestação de substituição - o nome correto para quem gera o filho de outras pessoas, até porque muitos consideram a expressão "barriga de aluguer" ofensiva da dignidade da mulher - voltou a ser notícia, mas não para anunciar o nascimento de rebentos dos famosos - a pandemia de covid-19 pôs a descoberto o drama dos pais que recorrem a este método para concretizar o sonho de ter um filho. As medidas de contenção do novo coronavírus, que levaram ao encerramento de fronteiras por todo o mundo, têm impedido estes pais de entrar nos países onde os seus filhos estão a nascer - já há crianças com mais de dois meses que nunca foram pegadas ao colo pelos pais, que não sentiram o seu cheiro, que nunca sentiram as suas carícias no banho. A pandemia causa mortes, traz tristeza e adia felicidades..As campainhas soaram com a divulgação de um vídeo da BioTexCom, uma agência internacional que se apresenta como centro de reprodução humana, que angaria clientes em todo o mundo e opera na Ucrânia, um dos países que permitem a prática da gestação de substituição e apresenta preços mais acessíveis, a rondar os 30-40 mil euros. No vídeo, que não deixa de funcionar como uma forma de pressão para as autoridades resolverem o problema, a clínica mostra uma sala imaculada com 46 bebés. É um apelo ao sentimento. Pela ternura que os bebés, enroladinhos em mantinhas coloridas, despertam; pela compaixão de os ouvir a chorar e não terem os pais por perto para os aninhar nos braços..Há outras histórias na Ucrânia, como a de Arina, contada pela Marie Claire, que foi obrigada a deixar as filhas biológicas de 4 e 7 anos e está fechada num apartamento de Kiev para se proteger a si e ao bebé que carrega de uma mulher francesa - mas que não sabe se poderá entrar no país para conhecer o seu filho quando nascer; ou nos Estados Unidos, onde Nir Tcik e o marido desesperam há mais de dois meses para levar a filha para o seu país, Israel, e que contam a sua história ao DN. Há também casais portugueses a viver este drama - ainda nesta semana o Expresso noticiou o caso de um casal que não consegue ir buscar o seu bebé à Geórgia..A pandemia de covid-19 alertou o mundo para outra realidade - a de casais inférteis e de casais gays que têm de recorrer à gestação de substituição para concretizarem um projeto parental, para muitos o mais importante da sua vida - pessoas que depois de muito sofrimento e tratamentos de fertilidade sem sucesso tomaram uma decisão, pagaram milhares de euros para que alguém gerasse o seu filho no ventre, sonharam pegá-lo ao colo nos primeiros minutos de vida e que agora veem todos estes planos por concretizar. À frustração juntam-se problemas legais e burocráticos que têm que ver com o registo e emissão de passaporte dos bebés quando os serviços estão encerrados, as fronteiras fechadas, os custos económicos para quem já estava no país onde o bebé nasceu e não pode sair. Como é o caso de Nir Tcik que diz já ter gasto cerca de 20 mil dólares desde que chegou aos Estados Unidos para assistir ao nascimento de Noga..Os Tcik estão fechados no hotel há dois meses.Nir (47) e o marido Avi (46) chegaram aos Estados Unidos a 13 de março e por lá continuam fechados num quarto de hotel - os primeiros dois meses de Noga (nasceu a 2 de abril) têm sido de confinamento absoluto. A única parte boa é que estão os quatro juntos, os dois pais e o irmão Sagi, de 4 anos, também nascido de maternidade de substituição no Ohio, Estados Unidos. Em Israel a gestação de substituição para pessoas do mesmo sexo é ilegal e isso tem obrigado o casal a atravessar o oceano Atlântico para concretizar o desejo de paternidade..Não era assim que o casal, um funcionário bancário e outro de um escritório de logística, queriam começar a nova vida a quatro, mas a pandemia do novo coronavírus trocou-lhe as voltas. Desde o início. "A minha filha nasceu e eu estava à espera num quarto. Durante dois dias estive sozinho no hospital com ela, sem ter direito a visitas", conta Nir ao DN, a partir de New Jersey onde espera ficar as próximas duas semanas até ter a papelada completa que permita que a criança viaje até Israel..O processo burocrático tem sofrido grandes atrasos porque os serviços estão todos encerrados. Só conseguiram obter a certidão de nascimento de Noga ao fim de um mês, mas ainda aguardam o passaporte. E sem passaporte a bebé não pode sair dos EUA..Um projeto que já de si não era barato está a ficar cada vez mais caro. Todo o processo da gestação de substituição custou ao casal 150 mil dólares (cerca de 134 mil euros), mas a estada inesperada nos Estados Unidos já aumentou a conta em mais 20 mil dólares (cerca de 18 mil euros). Nir, que nos envia a resposta por escrito, acrescenta vários pontos de exclamação quando se refere ao valor dos gastos imprevistos. Nunca pensou ficar fechado nos EUA.."Agora, as coisas estão a avançar, graças a Deus. Obtivemos a permissão do tribunal de Israel para ir à embaixada, fizemos testes de ADN, preenchemos papelada. Espero que daqui a duas semanas possamos voltar para Israel", diz Nir, explicando que a filha bebé precisa ainda de documentação especial para viajar por causa das restrições impostas para controlar a pandemia de covid-19..Nir faz questão de ressalvar que a agência de barrigas de aluguer, o seu advogado em Israel e os organismos do governo israelita têm feito de tudo para ajudar a que o processo avance. "O problema é que aqui está tudo fechado, mesmo os tribunais", lamenta..Na expectativa de verem o seu problema resolvido nas próximas duas semanas, a família Tcik pouco mais pode fazer. A situação sanitária não ajuda, passeios e saídas não são recomendados no país do mundo mais massacrado pela covid-19 - quase dois milhões de infetados e mais de cem mil vítimas mortais. E Noga não tem seguro de saúde....Vídeo obriga Ucrânia a tomar medidas.A Ucrânia tem sido o caso mais gritante e chegou a admitir que se as fronteiras não forem abertas poderão ficar mil bebés à espera dos pais para irem para casa - este é um dos países mais procurados para a gestação de substituição devido aos preços que pratica, mas só admite o processo para casais heterossexuais e comprovadamente inférteis..Henrique Sales, assessor de um consultório de advogados que representa a Gestlife no país vizinho, afirma ao DN que a agência tem "dois ou três casais espanhóis" na Ucrânia à espera de regressar. Desdramatiza, diz que estão todos bem, instalados em apartamentos fantásticos que a empresa tem em Kiev, mas admite que estão frustrados porque queriam trazer os bebés para casa, mostrá-los aos avós, ao resto da família, aos amigos. "Fazem videochamadas, mas não é a mesma coisa." Henrique diz que há também pais que não conseguiram entrar, mas que não há portugueses nesta situação..Voltemos ao vídeo da BioTexCom que correu mundo. As imagens não deixam de impressionar - parece uma linha de montagem de bebés, à espera dos pais para lhes darem carinho. E essa mensagem parece ter surtido efeito, obrigando as autoridades ucranianas a tomar posição. Segundo a Embaixada da Ucrânia em Lisboa, as fronteiras daquele país estarão encerradas à entrada de estrangeiros e apátridas até ao dia 22 de junho, mas já estão a ser tomadas medidas para resolver o assunto.."Como declarou a provedora de Justiça [ombudsman] da Ucrânia, Liudmyla Denisova, foi criado um mecanismo de interação entre os órgãos competentes da Ucrânia para dar o apoio necessário aos pais dos bebés nascidos de gestação de substituição. Este mecanismo já se aplica efetivamente. No passado dia 21 de maio, Liudmyla Denisova relatou que os cidadãos da Espanha e da China, pais dos referidos bebés, que foram para a Ucrânia antes do encerramento das fronteiras, já fizeram, com o apoio dos órgãos competentes ucranianos, todos os documentos necessários [aquisição de nacionalidade respetiva pelos bebés, legalização dos documentos ucranianos que serão usados nos territórios destes países, etc.] para a saída", responde a embaixada ao DN, acrescentando que estão a ser tratados 36 processos de pais que estão fora da Ucrânia. E também que quem já tem todos os documentos necessários pode sair do território ucraniano independentemente da reabertura da fronteira..O problema é que nem todos os países estrangeiros se dispõem a pedir a Kiev a autorização especial para que os seus cidadãos possam entrar na Ucrânia. É, por exemplo, o caso da França..Liudmyla chegou a afirmar, há cerca de duas semanas, que se o confinamento fosse prolongado, o número de crianças nascidas de gestação de substituição poderia atingir o milhar..Portugal: lei há quatro anos em standby.O que está a acontecer com os Tcik e outras famílias que estão a milhares de quilómetros dos seus bebés não poderia acontecer em Portugal. Simplesmente porque o nosso país não aceita a gestação de substituição onerosa, apenas a gestação altruísta, e aponta para que a mulher que empresta o útero seja familiar ou muito próxima da mãe beneficiária. Na verdade, a lei nem sequer está em vigor depois de dois chumbos do Tribunal Constitucional - o primeiro em 2018 porque o diploma não contemplava a perda do anonimato dos envolvidos e também porque não foi contemplado o período de arrependimento da gestante, o segundo em 2019..A primeira questão foi ultrapassada, mas a segunda não. No ano passado, o Bloco de Esquerda ainda tentou fazer aprovar a norma que impõe o período de 20 dias para que a gestante se possa arrepender e decida ficar com o bebé, mas a proposta acabaria por não passar pelo crivo dos deputados... o que resultou em novo chumbo dos juízes do Palácio Ratton, onde funciona o TC. O diploma da Procriação Medicamente Assistida (PMA) que contempla a maternidade de substituição deveria ter sido debatido a 20 de março - juntamente com a exceção para casos post mortem - mas com o Parlamento a meio-gás por causa da pandemia foi adiado. Como estão adiados há quatro anos os projetos de casais heterossexuais e de lésbicas para terem um filho recorrendo a esta técnica - desde 2016 que a maternidade de substituição está prevista na lei da PMA, mas que não para de se deparar com obstáculos. Éticos, jurídicos, ideológicos.."Criar obstáculos ao nascimento é um crime".Eurico Reis começa por recusar a designação barrigas de aluguer. "É uma expressão insultuosa, uma forma de menosprezar as mulheres", diz o juiz desembargador que se demitiu da presidência do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) quando foi conhecido o primeiro chumbo do Tribunal Constitucional, a 24 de abril de 2018.."O TC não declarou inconstitucional o desenho da gestação de substituição introduzido na Lei de Procriação Medicamente Assistida em 2016, limitou-se a apontar a inconstitucionalidade de alguns números do desenho da lei. Ou seja, o instituto jurídico é válido, mas a lei não pode ser aplicada", refere Eurico Reis..Há, portanto, quatro anos que a gestação de substituição continua parada em Portugal. "Continuamos a discutir o direito à felicidade de alguém que quer ter filhos. Não há nada que diga que temos de ser infelizes. Não se trata de um egoísmo individual, é o sentimento profundo da humanidade, de mulheres que querem ser mães e homens que querem ser pais.".Na sua opinião, o facto de a lei que permite a gestação de substituição continuar em standby em Portugal "propicia as negociações imorais" com recurso a agências no estrangeiro. "Não tenho a certeza de que as gestantes estão a ser livres e muitas vezes quando se precisa estamos a ajudar quem fez negociações por baixo da mesa. Há negócios cuja licitude é duvidosa. É moralmente repugnante.".Em Portugal é proibido a gestação de substituição remunerada, estando previstas penas de prisão na lei que aguarda nova versão no Parlamento. Para Eurico Reis, o importante é que se criasse o mínimo de entraves - as soluções deveriam ser vistas caso a caso.."As situações de gestação de substituição já são situações de profundo sofrimento humano e criar obstáculos ao nascimento é um crime. Têm que se estabelecer regras que facilitem a realização deste sonho.".E se a gestante se arrepender?."A limitação da possibilidade de revogação do consentimento prestado pela gestante de substituição a partir do início dos processos terapêuticos de PMA, impedindo o exercício pleno do seu direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade indispensável à legitimação constitucional da respetiva intervenção na gestação de substituição até ao cumprimento da última obrigação essencial do contrato de gestação de substituição, isto é, até ao momento da entrega da criança aos beneficiários (violação do direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito de constituir família)", escrevem os juízes do TC no acórdão de 2019 que impede pela segunda vez a maternidade de substituição..A questão é polémica. Se a matéria biológica para a gestação tem obrigatoriamente de pertencer a, pelo menos, um elemento do casal como é possível que se permita que a gestante se possa arrepender? O assunto promete ainda fazer correr muita tinta, mas os juízes do TC consideram a questão essencial ao cumprimento da Constituição..Carla Rodrigues, que sucedeu a Eurico Reis no CNPMA, só espera que nunca venha a acontecer um arrependimento: "O que viria a acontecer? Uma litigiosidade tremenda nos tribunais. Os pais são pais e a gestante reclama o quê? Se vier a acontecer vai prejudicar imenso a criança e todas as pessoas envolvidas. É uma coisa que o Tribunal Constitucional decidiu inventar no sistema jurídico português", critica a presidente do conselho..Por isso, justifica, o CNPMA sugeriu que se aperte mais a malha no que diz respeito à escolha da gestante, uma ação preventiva para minimizar o arrependimento..Todos os futuros casos de gestação de substituição têm de ser aprovados pelo CNPMA. A lei a isso o obriga. Mas como a lei está em standby, os oito processos que estavam em avaliação foram declarados extintos por falta de enquadramento legal. Da mesma forma que não podem entrar novos casos, embora Carla Rodrigues admita que recebem muitos telefonemas de pessoas com dúvidas..Nos intervalos das bolandas em que a lei da PMA tem andado desde 2016, entre os palácios de São Bento, de Belém e o Ratton, o conselho chegou a aprovar, em 2017, que uma avó gerasse a criança da sua filha sem útero - mas a mulher fez dois ciclos de tratamentos e o processo não foi bem-sucedido e não houve gravidez. Havia outro caso que estava mesmo a dias de começar os tratamentos, mas a decisão dos juízes do TC destruiu esse sonho..Em Portugal estima-se que haja pelo menos 300 mil casais inférteis. Alguns deles poderão estar à espera de que a lei seja finalmente agendada, aprovada e entre em vigor. Até lá, as palavras de Carla Rodrigues nunca fizeram tanto sentido: "Não há nem nunca houve gestação de substituição em Portugal."