Noites a ver séries e filmes, passeios na quinta de Mogofores (Anadia), um concerto "Ao lusko fusko" todos os dias. Assim passa José Cid estes dias de covid-19, sempre com máscara quando se cruza com alguém, o que já exigia a quem espirrava à sua volta. Uma semana antes de o governo decretar o distanciamento social, já cumprimentava sem beijos e abraços. Agora, só espera que surja uma "panaceia" para tratar a doença. Leva o que considera uma vida normal, mesmo com um Grammy em casa. Nem por isso deixou de "ser o patinho feio da música portugN´aao Huesa" - não tendo sido convidado para o Festival Fique em Casa. Espera que o público continue a não lhe regatear palmas, mesmo que "nada vá ser como dantes"..Quando é que deu o seu último concerto? Dia 6 de março na Alfândega do Porto, foi um concerto solidário para a reinserção de jovens, no âmbito do projeto Eu Sou Eu. Participaram vários artistas e fez-se uma receita considerável, cerca de sete mil euros..Adivinhava o que aí vinha? Tive imediatamente a noção, acompanhava o que se passava no estrangeiro e percebi que não era propriamente uma gripe das aves. Era uma coisa mais grave e que atacava pessoas da minha idade, embora eu seja um jovem a cantar. Nesse dia, já não cumprimentei ninguém com beijinhos. Pedi desculpa e cumprimentei com os pés ou à chinesa, a três metros de distância. A partir daí, fui para casa e terminou..Faz concertos solidários com regularidade? Normalmente, nas cidades onde faço espetáculos com muitas pessoas, comprometo-me a voltar na época baixa, a partir de outubro, a custo zero. É a retribuição à forma como têm apoiado a minha carreira. Agarro numa viola, num piano, e apresento-me com as minhas canções. Nestes últimos tempos, faço acompanhar-me do Mário Mata, uma pessoa que tenho apoiado e que é excelente e muito criativa. Esteve um ano e meio em número 1 na música portuguesa [Não Há Nada para Ninguém, 1981], decidiu ir para o estrangeiro e, quando regressou, ninguém o reconhecia..Teve de cancelar muitos concertos? Muitos. Todos os que tinha agendado até junho, o último era o do São João de Braga, a 23 de junho. O concerto na Altice Arena, de 2 de maio, foi adiado para 10 de setembro e o do Pavilhão Multiusos de Gondomar para 25 de setembro. Em julho não tenho nenhum cancelado, mas pelo andar da carruagem, não sei. Vou abrir as Festas de Viseu e espero que não seja cancelado..A longa carreira permite-lhe, apesar de tudo, suportar melhor os cancelamentos? Os cancelamentos fazem o maior dos transtornos. Tinha pedido um empréstimo para ampliar o estúdio de gravação, que estou a pagar. Mas, como tenho uma horta e galinhas, vou aguentar. E recebo direitos de autor da Sociedade Portuguesa de Autores, da minha obra como músico e poeta..As coisas vão voltar a ser como dantes? Nada vai ser como dantes, pelo menos durante os próximos anos. Para o ano, os concertos agendados poderão ser remarcados, mas já não poderão ser grandes produções, os artistas terão de saber ser autossuficientes. Vamos ter de passar para cachês mais baixos e os artistas terão de se apresentar com menos meios. As câmaras municipais têm de ajudar as pessoas doentes, pagar vacinas, etc., usar para esses fins o dinheiro que normalmente tinham para os concertos..As câmaras são os vossos grandes clientes? São, mas agora temos de ter a noção de que não podemos ter grandes cachês. Não quer dizer que vamos deixar de ter dignidade, estou a preparar-me para ir para palco com um piano e um ou outro músico, para alegrar as pessoas que bem precisam. E vou continuar a fazer os concertos de solidariedade na época baixa..Qual é o cachê do José Cid? Não tenho um cachê fixo, vai de cinco mil a 50 mil euros. Se podem pagar cem mil euros a uns brasileiros pirosos, podem pagar-me 50 mil a mim ou a qualquer outro artista português de grande qualidade. E, na minha equipa, somos 15 pessoas..Começou a dar miniconcertos "Ao lusko fusko", qual é o alinhamento? Não há um alinhamento. Quando venho a subir as escadas para o estúdio é que penso no que vou fazer, todos os dias às 18.30, meia horita. Hoje [terça-feira] fiz uma homenagem à Helena Correia e aos Açores. E fecho sempre com o tema No Tempo Feliz, que é uma homenagem à Gabriela [mulher], que, quando eu morrer, vai levar algumas cinzas para Timor. Depois, também quero pôr pó meu na quinta de Mogofores e onde nasci na Chamusca. No Tempo Feliz é a valsinha do meu último álbum Fados, Fandango, Malhão ... e Uma Valsinha..Também já escolheu a música do seu funeral, é essa? É uma ideia, mas preferia um poema de Sophia de Mello Breyner que musiquei: Um Dia. Podem cantar essa ou mais alegres..Como é que surgiram estes miniconcertos? Estava a pensar fazer um concerto e pensava que me convidavam para o Festival Fique em Casa [17 a 22 de março], como figura muito importante da música portuguesa que sou. Mas essa iniciativa tornou-se um conluio, puseram-me de lado, a mim e a muitas pessoas. Não tenho nada contra quem participou, mas fiquei triste, mais uma vez, senti-me um patinho feito, e resolvi fazer este concerto, há duas semanas..Patinho feio? Acha normal não ser imediatamente convidado para uma coisa destas? Não é a primeira vez, também ninguém me convidou para o espetáculo de solidariedade que se realizou após os fogos. É um grupinho, no fundo estão a promover os artistas que representam e eu não sou representado por nenhum agente. Eu e a Gabriela fazemos esse papel, não precisamos dessa gente para ser explorado. Sei de artistas com cachês de 25 mil euros e o agente dá-lhes cinco mil..O Grammy Latino de Excelência não mudou essa situação? Mudou, no sentido em que as pessoas começaram a perceber o valor mundial dos artistas portugueses, no resto nem por isso. Não saímos mais porque temos um mercado pequeno, dez milhões de pessoas, e as multinacionais não estão interessadas..E o mercado nacional? O grande problema é trocarem a boa música portuguesa pela má música estrangeira, não é toda mas é a maioria. Perdida a nossa identidade económica e política, só nos restava a identidade cultural, mas essa não é promovida. Os grandes nomes da música portuguesa são esquecidos..Não sentiu mesmo nenhuma diferença? Passei a ser conhecido no Brasil. A organização da entrega dos prémios ficou surpreendida com a minha atuação e, no segundo dia, tive o privilégio de dar um prémio ao meu amigo Gilberto Gil, de quem cantei uma canção, um momento que passou em todos os canais brasileiros. Mas os brasileiros estão interessados em vir cantar a Portugal, não em levar portugueses para o Brasil, nunca nos trataram com dignidade. Pagava para ver o Roberto Carlos a cantar acompanhado de um piano, a fazer concertos como estou a fazer..O que é que as pessoas podem esperar desses concertos? O José Cid e um piano, com gravação da minha mulher. É um programazinho de meia hora, simpático, que tento que seja cultural, mas também alegre, as pessoas precisam de coisas alegres..Com muitas visualizações? Tenho 50 mil visualizações diárias, mas indiretamente chegamos a 500 mil pessoas, em todo o mundo. E tenho convidado amigos para continuaram depois de mim. E todos os dias ponho um videoclip meu..Ou seja, não tem queixas do público. Nunca, é o meu grande prémio. O público viu o meu valor há muito tempo, não só as gerações mais velhas como as mais novas, gente muito nova que vejo nos meus concertos aos pulos. Sou um cantor ao vivo, tenho uma entrega e uma dinâmica grandes. No ano passado, só em agosto, fiz 20 concertos, violentíssimos, e com mais de duas horas de viagem para cada lado..Como se prepara? Tomo sempre a minha droga - um café - antes do concerto, como nunca bebo, fico com speed para aguentar duas horas em palco. Nunca vou jantar, fico a descansar no carro, trazem-me uma sopa ou sandes..Estou a falar em termos físicos. Faltavam-me duas cadeiras das 50 para terminar o curso de Educação Física, era o melhor aluno, mas veio o 25 de Abril e não concluí, ainda hoje estou com os colegas de turma. E, até há cinco anos, era cavaleiro internacional, tenho uma boa condição física. Já não aguento praticar desporto e dar concertos, mas aguento muito bem duas horas em palco, além de que tenho uma boa empatia com o público. Estou com 78 anos e com melhor voz, mais limpa, e melhor imagem, mais magro, estou a melhorar..Como são os dias em confinamento social? Tenho a sorte de estar numa quinta, com patos, perus, pavões, galinhas, a Gabriela tem a sua horta biológica, não é tão traumatizante como viver num apartamento na cidade. Tenho um amigo e conterrâneo [ribatejano] que cuida disto e um primo trata dos animais. Ninguém entra aqui sem máscara. Levantamo-nos muito tarde, às 13.00, e, à noite, vemos séries e filmes..É noctívago? Não, andamos com os sonos trocados, também não temos ninguém à espera. Parece que estamos no verão, com as saídas para os espetáculos, em que venho às três da manhã, venho sempre dormir a casa. Tomamos o pequeno-almoço ao almoço, passeamos na quinta. Só saímos para compras..E projetos para o futuro? São os de qualquer cidadão comum: ver as notícias, saber quando há uma vacina, um remédio, uma panaceia para o coronavírus. E continuar com todas as precauções de higiene e os cuidados com a saúde. Uso máscaras há muitos anos. Um músico que esteja a espirrar nunca entra no meu caro sem tomar um remédio para a garganta ou para o nariz e sem pôr uma máscara..E a nível da música? Vai sair um segundo um single do meu álbum, com o tema No Tempo Feliz. Está pronto um álbum rock sinfónico, acho que já não tenho tempo nem dinheiro para o editar. Tenho de esperar melhores dias, é um duplo vinil, não é fácil a edição. Espero estar nas festas de Faro, em setembro, onde vamos recuperar o Quarteto 1111, e na passagem do ano. O contrato estava a ser fechado, mas há uma obrigação moral de as câmaras reagendarem esses concertos, o que não sei é se vão ter dinheiro para o fazer nos mesmos moldes..Vamos todos ficar bem? Claro, vamos ter de aprender a viver de uma forma mais solidária, ser mais humildes, saber dar a mão, estar mais próximo dos outros. Vai haver muita fome e miséria.