"Os alemães amam Fernando Pessoa. A sua melancolia fala-nos à alma"

Susanne Sporrer tinha 16 anos quando veio pela primeira vez a Portugal. Apaixonou-se. Aprendeu português, passou um ano em Coimbra e até foi jornalista em Lisboa. Há dois anos e meio voltou para assumir a direção do Goethe-Institut. Em conversa com o DN falou do instituto, dos seus autores favoritos e da paixão pela partilha da língua e da cultura alemã.
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Foi de mochila às costas que Susanne Sporrer conheceu pela primeira vez Portugal. Tinha 16 anos e naqueles finais dos anos 70 estava a fazer uma das primeiras viagens sem os pais. "Foi amor à primeira vista", conta agora, sentada no gabinete do Goethe-Institut de Lisboa, de que é a diretora há dois anos e meio.

O amor pelo país estendeu-se também à língua, que Susanne estudou em jovem mas que agora admite estar a precisar de umas "correções", e ao intercâmbio entre as culturas portuguesa e alemã, duas das vertentes do trabalho que desenvolve no instituto.

"Tenho uma história muito especial com Portugal", confessa Susanne num português invejável, no qual espreitam os erres da sua língua materna. De facto, a primeira impressão, durante a tal viagem de mochila às costas que a levou a percorrer o nosso país de norte a sul, foi tão forte que mudou de curso, aprendeu português e voltou para viver um ano em Coimbra. "Trabalhei na universidade e no Goethe-Institut, que na altura tinha ali uma delegação. Mudou a minha vida. Acabei os estudos na Alemanha e voltei a Portugal, desta vez em Lisboa, e trabalhei como jornalista."

As provas dessa primeira passagem pela capital lisboeta estão em cima da secretária, duas revistas Zeitschrift für Kulturaustausch - literalmente Revista para Intercâmbio Cultural -, para as quais Susanne entrevistou personalidades como José Saramago, João Barrento, Almeida Faria e muitos outros, "pessoas que foram importantes para o intercâmbio cultural entre os dois países", explica.

Com este background, não espanta que, quando mudou de vida, Susanne tenha começado a trabalhar para o Goethe-Institut, primeiro na Alemanha - "em Berlim e em Freiburg" - e depois em Abu Dhabi, a capital dos Emirados Árabes Unidos.

De volta a Lisboa, à frente do Goethe-Institut, Susanne recorda como "há mais de 20 anos que não falava português. Tenho de aprender de novo, mas as palavras, a estrutura da língua estão cá", garante. Até porque ainda se lembra perfeitamente como, jovem estudante, achou o português mais fácil do que outras línguas, como o inglês ou o francês. "É difícil de explicar. Talvez seja por gostar tanto. Quando se gosta mesmo de uma língua é mais fácil de aprender", diz por detrás da máscara preta às pintinhas brancas, acessório essencial nestes tempos de pandemia.

Confessando a sua luta ainda com a gramática e as inevitáveis expressões idiomáticas, Susanne conta como nos últimos anos sente que aumentou o interesse dos alemães por Portugal. "Há mais conhecimento, há mais artigos nos media alemães sobre política, justiça, cultura em Portugal. Há mais viagens, mais turistas. E o intercâmbio é muitíssimo desenvolvido." E acrescenta: "Lisboa está mesmo na moda. Para as minhas colegas, o trabalho em Portugal é um sonho - todos o querem. Isso tem a ver com a civilidade dos portugueses. E nós como Goethe-Institut fazemos tudo para desenvolver a perceção do outro."

A forma como os portugueses veem a Alemanha também mudou. E Susanne Sporrer admite: "Acho que a imagem da Alemanha se tornou mais diferenciada. Isso tem muito a ver com os jovens, que têm outros meios de comunicação, que têm mais contactos, que viajam para Berlim. E Berlim não tem nada a ver com a imagem tradicional que as pessoas têm da Alemanha: é uma cidade jovem, inovadora."

Empenhada em se afastar dos clichés sobre o seu país natal, a diretora do Goethe prefere sublinhar que nos últimos anos "há outras imagens da Alemanha a nascer na cabeça das pessoas. Por exemplo, a grande solidariedade que demonstrou na crise dos refugiados - os braços abertos. Isso foi mesmo importante para mudar a imagem da Alemanha. Também a energia para a Europa. Muitos portugueses que vivem na Alemanha destacam ainda a forma como os alemães se comportam em relação ao passado: a confrontação crítica do Holocausto, do nacional-socialismo. Isso é muito profundo, faz parte da nossa identidade." E garante: "É esta a Alemanha que o Goethe-Institut representa e que queremos transmitir."

Com 157 institutos em 98 países, o Goethe-Institut está por todo o mundo. Os primeiros institutos foram criados depois da II Guerra Mundial, como sucessores da Academia Alemã. E se começaram por dar treino aos professores de Alemão na Alemanha, depressa se espalharam pelo mundo, partilhando a língua e a cultura do país. Mas a queda do Muro de Berlim e a Reunificação Alemã, cujos 30 anos agora se celebram, marcaram um ponto de viragem na instituição com a abertura de ainda mais institutos.

Em Portugal, o Goethe-Institut foi fundado na década de 1960 e hoje continua essencial na divulgação da cultura alemã no nosso país. "Podia estar aqui a falar até amanhã, mas o primeiro ponto que para mim é muito importante é que trabalhamos sempre muito de perto com as instituições portuguesas. É uma das principais características do nosso trabalho", explica Susanne Sporrer.

Para a diretora, "a questão não é o que é que queremos mostrar da Alemanha, mas o que é que os portugueses querem saber de nós. Tentamos desenvolver os nossos projetos em conjunto com parceiros em Portugal, grandes e pequenos". E elenca a Culturgest, o Centro Cultural de Belém, o Teatro do Bairro Alto, o Hangar, o São Luiz Teatro Municipal.

Com este último e com o Instituto Francês de Portugal, o Goethe-Institut organiza em novembro deste ano um festival online de filosofia, o Filo-Lisboa. "Vamos ter uma noite da filosofia alemã, portuguesa e francesa. O tema vai andar à volta de como a pandemia muda o nosso conceito de vida e as sociedades. Vai ser em novembro", informa-nos Susanne.

Mas parcerias não se ficam por aqui, o Goethe-Institut trabalha ainda com a Fundação de Serralves, com o Teatro Municipal do Porto e com os grandes festivais das várias áreas, do cinema à dança, passando pelo teatro. Sem esquecer a parceria com as universidades ou o recém-criado Prémio de Jornalismo Luso-Alemão, Susanne Sporrer faz questão de destacar o trabalho da EUNIC, que junta instituições e embaixadas de toda a Europa e organiza eventos como o Dia Europeu das Línguas ou a Noite da Literatura Europeia.

Horas depois da nossa conversa num instituto quase vazio - ou não estivesse o ano letivo ainda a começar e, devido à pandemia de covid-19, com aulas à distância ou em turmas muito reduzidas, "no máximo oito a dez alunos, dependendo do tamanho da sala, quando antes eram 16" -, o Goethe-Institut assinalou o Dia Internacional da Tradução com um evento em que reuniu vários tradutores.

Então e os portugueses continuam a preferir os clássicos ou já descobriram os novos nomes da literatura alemã? "Os clássicos, como Günter Grass, Goethe, Thomas Mann, Hermann Hesse, são os mais populares, isso é claro. Mas nos últimos dez anos temos assistido a uma pequena mudança. Vemos uma maior coragem por parte dos editores portugueses em publicarem jovens autores contemporâneos", afirma Susanne Sporer, lamentando apenas que haja ainda poucos tradutores de alemão, mas sublinhando que os que há são "muito bons".

Quanto a exemplos desses novos nomes que começam a chegar às livrarias portuguesas, a diretora do Goethe-Institut aponta desde Sasha Marianna Salzmann, dramaturga e autora do romance Fora de Si, ou Benedict Wells, cuja obra O Fim da Solidão também está em português e que se está a tornar um sucesso mundial, sobretudo junto dos jovens. "A minha filha tem 20 anos e adora Benedict Wells", garante Susanne a rir-se.

E para divulgar ainda mais novos nomes e dá-los a conhecer aos portugueses, o Goethe-Institut tem um portal online chamado Letra que foi iniciado em 2019 e é totalmente dedicado à literatura contemporânea de expressão alemã, contando com apoio da Associação de São Bartolomeu dos Alemães em Lisboa. "Divulgamos excertos já traduzidos para motivar os editores a traduzir mais literatura da Alemanha para português", explica a diretora.

Entre os alemães também parecem ser os clássicos da literatura portuguesa a despertar mais interesse. "Sem dúvida. Fernando Pessoa continua a ser o autor mais conhecido. Os alemães amam Fernando Pessoa." E quando se questiona sobre este fascínio, Susanne hesita, mas lá vai dizendo: "Eu acho que tem a ver com a profundidade do pensamento, com a sua melancolia, que fala à alma de muitos alemães. Essa é uma proximidade entre Portugal e a Alemanha."

A própria diretora já leu muitos autores portugueses. "Li Os Lusíadas, de Camões, da primeira frase até ao fim. Gosto imenso de Eça de Queiroz - A Relíquia, Os Maias. Fernando Pessoa, claro. Em alguns casos, li as traduções para alemão e depois o original em português, e acho que pela poesia é ótimo aprender uma língua, é a alma de uma língua." E preferências? "Isso é mesmo difícil. Saramago é muito, muito bom. Mas depende do momento. Às vezes gosto de ler Eça de Queiroz porque ele analisa a sociedade, as interações entre as pessoas, as conversas, as personagens, a forma de falar." Quanto a Fernando Pessoa, partilha da opinião dos seus concidadãos: "A sua escrita toca a alma."

Apaixonada por Portugal e pela Alemanha, ninguém melhor do que a diretora para nos dar três boas razões para vir ao Goethe-Institut. "Tenho quatro!", exclama. "A primeira é que o Goethe-Institut é o primeiro e o mais importante ponto de contacto para quem quiser aprender a língua e a cultura alemãs. Aqui pode receber excelentes aulas de alemão, nas quais se aprende a falar, não só a decorar. Aqui também pode obter todas as informações sobre a Alemanha. E quando se quer ver arte, eventos inovadores, é um bom sítio para saber mais sobre a cultura alemã e sobre os temas que temos em conjunto. A quarta é o jardim: é maravilhoso!"

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