"Nos últimos 7 anos, mataram 15 mil habitantes da região do Donbass numa operação de genocídio programado"..A frase é do ex-deputado do PCP Miguel Tiago, numa conversa no Twitter que inclui o ex-eurodeputado, ex-candidato presidencial e apontado possível novo secretário-geral João Ferreira. Miguel Tiago responde a uma tuiteira que reage a um tuite de Ferreira dizendo-se "muito desapontada com a posição do PCP" e perguntando se, não havendo invasão, haveria "mortos pelas ruas".."Esses números são de quem, Miguel? Houve uma investigação independente?", pergunta a tuiteira, que ostenta, ao lado do nome, o símbolo de foice e martelo. E prossegue: "Eu sei que havia uma guerra civil na Ucrânia mas era um assunto só deles, não é com violência que se combate a violência. Eu sei que não é um país onde impera a democracia." Sem adiantar qualquer fonte para a sua afirmação, o ex-deputado insiste: "Não era uma guerra civil, era um genocídio de todos os que não queriam o corte de ligações com o povo irmão da Rússia.".Twittertwitter1512091693377593344.Twittertwitter1512098637312106496.A seguir, Miguel Tiago adianta uma fonte para as suas afirmações: a ONU..Twittertwitter1512098493623672841.Quando horas mais tarde um outro tuiteiro confronta Tiago invocando os números do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU sobre vítimas do conflito, o ex-deputado não responde. Também João Ferreira nada diz - nem para apoiar as afirmações do seu camarada nem para as refutar..Twittertwitter1512148032321736714.Twittertwitter1512149091794444304.Visitando a página criada pelo partido a que ambos pertencem para expor a respetiva posição "sobre a Ucrânia", percebe-se o silêncio de João Ferreira. É que ali temos, em letras garrafais, na secção de "factos e números", a cifra citada por Tiago: "15 mil mortos nos últimos 8 anos no Donbass - a guerra não começou agora.".Esta "informação" surge ao lado de cifras sobre "o orçamento militar dos EUA" e dos gastos militares da UE, EUA e NATO e de como são "10 vezes superiores ao valor dos da Rússia". Isto numa página, recorde-se, que surge na sequência da invasão da Ucrânia pela Rússia, e na qual se incluem igualmente as datas do alargamento da NATO a leste, assim como das ações da aliança na Jugoslávia, Afeganistão e Líbia - sem uma palavra, porém, sobre as invasões da Chechénia e Geórgia pela Rússia e sobre a ação deste país na Síria.."Elementos para compreensão" é o pós-título da dita página, pelo que procuremos então os elementos que nos permitam compreender o que o PCP considera ter sido o início dessa guerra que não começou agora e a responsabilidade por aqueles 15 mil mortos..Vamos então à cronologia, e ao ano de 2014. E que encontramos? Que houve a 16 de março "um referendo" na Crimeia que "por esmagadora maioria" aprova a reunificação com a Rússia. Nem uma palavra sobre a invasão da península por forças russas, certificada por entidades independentes, nem sobre o facto de o referendo ter sido considerado ilegal pela Assembleia das Nações Unidas..A seguir, para o PCP, vem "o referendo em Lugansk e Donetsk (Donbass) organizado pelas autoridades locais cujo resultado foi [a] rejeição maioritária do Golpe de Estado [golpe de estado é como o PCP chama à queda do governo do presidente prórrusso Viktor Yanukovych, que fugiu da Ucrânia na sequência de meses de protestos e violência nas ruas, fuga à qual se seguiram eleições] e a afirmação dos direitos políticos e culturais da região.".É este referendo então, segundo o PCP, que explica o "início da guerra no Donbass sob o pretexto de uma operação antiterrorista", e aquilo que descreve como "brutal repressão no Sudeste do país da generalizada rejeição popular do governo golpista provocando milhares de vítimas, um dramático fluxo de deslocados e refugiados e crimes terroristas", e "ações militares na região do Donbass, com recurso a artilharia pesada e aviação de combate, provocando milhares de vítimas civis e dezenas de milhares de refugiados, assim como a destruição de cidades e aldeias e de infraestruturas básicas.".Os 15 mil mortos vêm logo a seguir: "Ucrânia bombardeia sistematicamente repúblicas autoproclamadas - estima-se que as agressões da Ucrânia ao Donbass desde 2014 tenham resultado em cerca de 15 mil mortos e centenas de milhares de refugiados."."Estima-se"? Qualquer pessoa que procure fontes para esta estimativa fica sem saber onde o PCP a foi buscar. Ao Alto Comissariado da ONU para aos Direitos Humanos, que desde 2014 fez relatórios uns atrás dos outros sobre a Ucrânia, não foi de certeza..No último relatório antes da invasão de fevereiro, lê-se: "Durante todo o conflito, de 14 de abril de 2014 a 31 de janeiro de 2022, o Alto Comissariado contabilizou um total de 3107 mortes de civis (1853 homens, 1072 mulheres, 102 rapazes, 50 raparigas, e 30 adultos cujo sexo não foi identificado). Incluindo as 298 pessoas que estavam a bordo do voo MH17 das Linhas Aéreas Malaias que foi derrubado a 17 de julho de 2014 [por um míssil russo], são 3405 mortos civis.".Note-se que em maio de 2016, ou seja dois anos após o início do conflito, este órgão das Nações Unidas apontava, num relatório sobre mortes, 9404 mortos e 21671 feridos "na zona de conflito da Ucrânia oriental", estimando-se que nessa altura já tinham morrido dois mil civis, a que se somavam as vítimas do derrube do avião malaio. Isto significa que haveria já então mais de 7000 mortos entre os combatentes de ambos os lados..Grande parte dos mortos - civis e combatentes - concentraram-se assim nos primeiros dois anos da guerra, sendo que, de acordo com a ONU, as pesadas baixas civis no início da guerra deveram-se "ao bombardeamento indiscriminado de áreas residenciais tanto nas áreas controladas pelo governo ucraniano - Avdiivka, Debaltseve, Popasna, Shchastia e Stanychno Luhanske - como em cidades controladas pelos grupos armados, incluindo Donetsk, Luhansk e Horlivka." Ou seja, bombardeamentos de ambos os lados, civis mortos de ambos os lados..Aliás os relatórios da ONU são muito claros na atribuição de ações inadmissíveis e contra os direitos humanos a ambos os lados do conflito, assim como na implicação da Rússia na guerra. Mas o número de mortos civis relacionados com o conflito, quer no território controlado pelo governo ucraniano quer no das autoproclamadas repúblicas de Luhansk e Donetsk, desceu muito a partir de 2019, sendo de 27 nesse ano, 26 em 2020 e 18 em 2021, devendo-se sobretudo a explosões de minas e outros artefactos, ou seja, não diretamente a combates ou bombardeamentos..E se o PCP afirma ter havido em 2022 "intensificação dos bombardeamentos no Donbass por parte do regime ucraniano" (porque é preciso "justificar" a ação da Rússia "em socorro" das "repúblicas" que Putin reconheceu no seu discurso de 21 de fevereiro), a ONU diz o exato contrário: "Apesar das tensões [devido ao acumular de tropas russas junto da fronteira com a Ucrânia], a situação na zona de conflito da Ucrânia oriental manteve-se relativamente calma de novembro de 2021 a janeiro de 2022.".Acresce que a descrição da situação nas "autoproclamadas repúblicas" (a ONU refere-as assim) era ainda no final de 2021, segundo o Alto Comissariado, de "graves violações que persistem", incluindo detenções arbitrárias, tortura, maus-tratos. O mesmo para a Crimeia, onde nem sequer é garantido, segundo o último relatório citado, o direito a escolher advogado. .Uma página de um partido não é, obviamente, um órgão de informação. Mas há mínimos exigíveis, no que respeita a distinção entre verdade e mentira, a uma agremiação política que se diz respeitadora da legalidade e dos princípios constitucionais e que ainda por cima passa a vida a declarar-se vítima de imputações falsas. Aquilo que o PCP serve como "factos e números" sobre a Ucrânia e a sua versão da "guerra que não começou agora" é uma infamante salada de mentiras e omissões descaradas, ao nível de um Breitbart ou qualquer página de fake news. Com um único e miserável objetivo: justificar a invasão russa e apresentar a Ucrânia como um estado criminoso. Pedia-se vergonha, se valesse a pena.