As virtudes da censura
Louvores, muitos louvores, à veneranda instituição censória. Graças a ela, temos hoje entre nós, vivaz e faceto, Monsieur de Chimpanzé, opereta em um acto que, a muito custo, Júlio Verne conseguiu levar à cena nos Bouffes-Parisiens, em Fevereiro de 1858. Foi um desastre. O único exemplar que se conhece dessa "macacada musical", como a define o manuscrito, foi encontrado mais de um século depois daquela fatídica representação em Paris, sendo publicado apenas em 1980, imagine-se. A descoberta foi feita nos arquivos do gabinete da Censura, a quem todas as peças teatrais deveriam ser submetidas. Ignora-se se os censores levantaram qualquer objecção à opereta de Verne, uma vez que o processo administrativo desapareceu, só restando o original da peça. Até o libreto musical se esfumou, crê-se que para todo o sempre. É pena.
Com tradução de Mário Montenegro, Sr. de Chimpanzé foi apresentada em 2009 pela companhia Marionet no Museu da Ciência de Coimbra, tendo sido produzido na altura um encantador livrinho com o texto de Jules Verne e uma esclarecedora introdução do seu biógrafo Volker Dehs.
O enredo é simples, quiçá mesmo simplório. Entram na peça quatro personagens: Van Carcass, director e proprietário do museu zoológico de Roterdão; Etamine, sua filha, jovem insonsa e esparvoada; Baptiste, o criado espanhol, que em surdina afirma descender de uma nobre família das Espanhas, os duques de Las Pirouettas; e por fim Isidore, dito "o Chimpanzé". E que fazem em cena estes quatro artistas? Muito pouco, quase nada. Sabendo que ia chegar ao museu de Roterdão um símio importado do Brasil, Isidore disfarça-se de macaco para iludir a vigilância que Van Carcass exercia sobre sua filha e, enfim, para entabular castas conversações com ela, visando o matrimónio. Pai Carcass condenava o enlace, desdenhando Isidore por ser filho de um criador de tulipas cuja colecção, para mais, atraía mais turistas do que o seu museu zoológico. Porém, ao demonstrar que o enganara, ameaçando gritar aos quatro ventos que um cientista com a reputação de Van Carcass não fora sequer capaz de distinguir um homem de um macaco, Isidore acaba por vencer pela chantagem a resistência paterna e, no final feliz, arrecada para si a delicada mão da menina Etamine. Cai o pano.
É pouco? É pouco, de facto. Contudo, esta opereta simiesca tem mais interesse do que parece. Falam os especialistas na proximidade com Darwin, mas o certo é que A Origem das Espécies só veria a luz em 1859, um ano depois da representação de Monsieur de Chimpanzé, não tendo pois influenciado Júlio Verne nem vice-versa. Mais do que uma defesa do evolucionismo, Sr. de Chimpanzé avança uma outra ideia, ainda mais subversiva, a de que, em direitas contas, homem e macaco pouco diferem, sendo difícil, ou até impossível, distingui-los na sua essência. Contudo, não podemos tirar da opereta de Verne o que lá não está, forçando a nota, tanto mais que colocar macacos em cena não era propriamente uma ideia original no panorama dramático da época. Ainda assim, não é exagero dizer-se que Sr. de Chimpanzé tem uma mensagem bastante moderna, até mesmo pós-moderna, sobre os limites da ciência - ou, se quisermos, sobre as taras do cientismo dominante ao tempo em que a peça foi escrita, le stupide XIX siècle. É também um texto sobremaneira avançado, a modos que progressista, ao explorar a continuidade entre homens e animais. Se Darwin dirá que os humanos descendem dos macacos, Verne insinua que não existe grande diferença entre uns e outros, antecipando-se à pergunta que, mais de um século depois, o historiador britânico Felipe Fernández-Armesto colocaria no título de um dos seus livros - So You Think You"re Human? -, para concluir que, devido aos trabalhos de primatologistas como Jane Goodall e ao movimento dos direitos dos animais, entre outros factores, sabemos hoje que existe uma diferença de grau entre os humanos e os grandes primatas - mas que essa diferença é apenas de grau, nada mais.
Nesta comédia de enganos (Verne era leitor de Shakespeare), a loucura vislumbra-se, de longe. "Estou entre um macaco e um louco!", exclama a dado passo Etamine, confundida. Na vida de Jules Verne a loucura também se avistaria, mas infelizmente bem mais de perto. Em 1886, o escritor foi atingido por dois tiros disparados pelo seu sobrinho Gaston, que foi declarado louco e internado num manicómio até ao fim dos seus dias, enquanto Verne ficava coxo para o resto da vida. Estivera em Lisboa em 1878, de onde partiu rumo a Argel no seu iate Saint-Michel III, adquirido graças ao tremendo êxito literário que ocorreu muito depois da catástrofe de Chimpanzé, que foi despedaçada pela crítica e terá rendido ao seu autor não mais do que uns 500 euros, aos preços de agora.
Verne regressaria à capital portuguesa em Maio de 1884, dois anos antes de ser alvejado pelo sobrinho, para participar num banquete oferecido em sua homenagem por David Corazzi, o editor das suas obras em português. Nas duas ocasiões, avistou-se com Manuel Pinheiro Chagas, seu tradutor e admirador. Partilhavam algo em comum, ainda que na altura o não soubessem: Verne, atingido a tiro pelo sobrinho; Chagas, que já fora sovado à bengalada no parlamento por um furioso adepto da Comuna, seria mais tarde alvo de uma segunda agressão, esta ainda mais violenta e da qual nunca recuperou, sendo a causa provável da sua morte. Vítimas, um e outro, da feroz natureza dos homens. E afinal, quem é a besta?
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
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