Há os filmes feitos para a posteridade e depois há aqueles que passam à posteridade sem que os seus criadores tenham perdido um minuto a pensar em algo mais do que o sucesso imediato. Casablanca será sempre um dos exemplos mais eloquentes do segundo tipo. Realizado em 1942, figurava na cadeia de produção da Warner Bros. como "mais um filme" desse ano, sujeito às restrições de um tempo de guerra e, por isso, também à necessidade do improviso. Só do próprio Michael Curtiz, seria o terceiro título a constar na lista de realizações de 1942 (depois de Corsários das Nuvens e Canção Triunfal), tendo como argumentistas dois assalariados dos estúdios, os irmãos Julius e Philip Epstein -- que, tal como o realizador e o filme, acabaram distinguidos com Óscares, juntamente com um terceiro argumentista, Howard Koch (que se juntou à equipa quando os Epstein foram solicitados para outro projeto no contexto do esforço de guerra)..A assinalar agora 80 anos da estreia, Casablanca foi, assim, uma obra resultante da máquina bem oleada da Hollywood clássica, sem grande aparato de produção e muito desenrascanço pelo meio. O que em nada comprometeu a sua mitologia, entenda-se. Ainda recentemente reencontrámos a sua influência suave num romance português, Adeus Casablanca, de João Céu e Silva. Já para não falar dos inúmeros filmes que o vão citando ao longo do tempo..A evocação de Casablanca é indissociável das personagens de Hum-phrey Bogart e Ingrid Bergman -- Rick Blaine e Ilsa Lund -- enquanto símbolos do máximo romantismo cinematográfico. Mas será a sua história de amor capaz de ofuscar tudo o resto?.A eterna relevância e beleza do filme de Curtiz tem também que ver com um pano de fundo que acabou por se sobrepor às matérias do coração. Filmado e ambientado na Segunda Guerra Mundial, o filme retrata o fluxo de refugiados que chegavam à cidade marroquina do título, uns sem meios para prosseguir, outros endinheirados e influentes que conseguiam vistos para Lisboa, e daí para os EUA. São estes últimos que frequentam o bar de Rick, ponto de encontro entre o próprio e Ilsa (que chega lá casada com Victor Laszlo, um líder da resistência) e palco de um grande, grande momento: aquele em que se canta a Marselhesa a plenos pulmões para abafar os nazis que tentam impôr o seu hino. Escusado será dizer que a força desta cena está intacta no seu reflexo de um certo presente....Ainda sobre o célebre par: na altura, Humphrey Bogart começava a ganhar o estatuto de estrela (no ano anterior protagonizara O Falcão de Malta, de John Huston) e a sueca Ingrid Bergman, que tinha contrato com o produtor David O. Selznick, foi cedida à Warner Bros. por 125 mil dólares, integrando um elenco que contava ainda com o austríaco Paul Henreid, o britânico Claude Rains, o austro-húngaro Peter Lorre, o húngaro S.Z. Sakall, o alemão Conrad Veidt, os franceses Madeleine Lebeau e Marcel Dalio, entre outros imigrantes na figuração. Sendo o próprio Curtiz, realizador designado para a tarefa, um húngaro que falava um inglês macarrónico... Ou seja, uma equipa quase inteiramente composta por exilados, de novo, num perfeito reflexo da mensagem de união humana contra Hitler..A estreia apressada em novembro de 1942 teve apenas um motivo: o desembarque das tropas aliadas em Casablanca no dia 8 desse mês. Uma verdadeira janela de oportunidade para lançar um filme cujo título já andava nas manchetes, à medida que soldados britânicos e americanos davam nova vida às ruas que no grande ecrã foram reproduzidas em estúdio..Sendo o mais citável dos clássicos, com frases que continuam a circular, em diferentes contextos, independentemente da memória específica das cenas em que foram pronunciadas, revisitamos aqui uma frase por cada década deste aniversário de Casablanca. Para quem quiser fazer o percurso mais concreto, o filme está disponível na HBO Max, numa excelente cópia restaurada..O pedido é de Ilsa. Ao entrar pela primeira vez no bar de Rick, ela reconhece o pianista, Sam (Dooley Wilson), e pede-lhe para tocar As Time Goes By "em nome dos velhos tempos". Trata-se da música que desperta as lembranças do love affair de Rick e Ilsa em Paris e, por isso, um atrapalhado Sam hesita em fazer-lhe a vontade, temendo que a melodia chegue aos ouvidos do patrão e este se irrite... Claro que é justamente o que acontece -- mas é também aí que Rick se depara com a presença dessa mulher que o abandonara muitos meses antes..Embora seja uma das frases mais citadas de Casablanca, é-o de forma errada: "Play it again, Sam" fixou-se na cultura popular como algo dito por Rick. É certo que ele mais tarde também pede ao pianista que toque o tema, mas diz apenas "Play it, Sam", enquanto mergulha nas suas memórias parisienses.."Play it again, Sam" é uma falsa citação tão entranhada no imaginário à volta do filme que até Woody Allen escreveu uma peça dando-lhe um título homónimo ---após a estreia na Broadway, em 1969, foi uma das suas primeiras aventuras como argumentista e ator em Hollywood..Sim, de todos os bares de todas as cidade do mundo, Ilsa tinha de entrar no de Rick. Este lamento do protagonista dá-se na cena em que o vemos quase às escuras sentado numa mesa do seu estaminé, entregue aos copos e na companhia apenas de Sam, que testemunha, como nós, um raro momento de fragilidade desse herói "anti-sentimental". Despido da sua quotidiana postura sarcástica, Rick acede às recordações de Paris, onde se ouve Ilsa pronunciar outra frase semelhante a esta, na formulação: With the whole world crumbling, we pick this time to fall in love ["Com o mundo inteiro a desmoronar, fomos escolher este momento para nos apaixonarmos"]. Um dos vários exemplos da precisão dos diálogos..Está entre as mais citadas expressões de Casablanca, e surge quatro vezes ao longo do filme. Começou por ser uma improvisação de Humphrey Bogart numa das cenas do flashback de Paris, e os argumentistas aproveitaram para a integrar como marca da personagem. Quando Rick diz "Estou de olho em ti, miúda", fá-lo como quem garante a Ilsa que ela esteve, está e sempre estará no seu pensamento. Uma forma de romantismo sem conversa mole..A ironia sofisticada é parte do brilhantismo da escrita do filme. À pergunta do capitão Louis Renault, sobre o motivo que trouxe Rick a Casablanca, este responde: "A minha saúde. Vim para Casablanca pelas águas". O primeiro contesta: "Quais águas?! Estamos no deserto!" E obtém como última réplica de Rick: "Fui mal informado.".Aqui está um dos diálogos imaculados que definem o traço humorístico da interação de Rick/Bogart e Renault/Claude Rains, duas personagens/atores que configuram uma amizade natural num cenário pouco provável. Seja como for, nunca ficamos a saber o que realmente levou o americano Rick àquela cidade marroquina..É o momento mais nobre de Rick no filme. Prestes a ver Ilsa partir, ele sacrifica o seu amor por ela com um gesto em prol de uma causa maior: dá à amante e ao seu carismático marido os livres-trânsitos que lhes permitem voar para Lisboa e chegar aos Estados Unidos. De facto, os problemas de três pessoas (o triângulo amoroso de Casablanca) "são insignificantes neste mundo louco". Há uma guerra a decorrer e Ilsa deve permanecer ao lado de Victor, isto é, do lado da Resistência. Afinal, mais do que o romance entre duas pessoas, o conflito em pano de fundo assume-se como o coração moral do filme..Mais uma das míticas expressões de Casablanca, "Teremos sempre Paris" é também o que Rick diz a Ilsa como consolação mútua na despedida. A frase quer apenas dizer que ninguém lhes pode roubar as memórias da paixão vivida na Cidade das Luzes. Mas a elegância romântica contida na sequência de palavras está para além do seu significado em contexto..Curiosamente, durante a rodagem, e até à ocasião da respetiva cena, Ingrid Bergman não sabia se a sua personagem iria ficar com Rick ou com Victor. Ela tentou que os argumentistas lhe dissessem com alguma antecedência, mas estes mantiveram-se indecisos até à última da hora. Como é que uma atriz gere o desconhecimento do destino da sua personagem? Com um toque de indefinição no rosto e olhos lacrimejantes, potenciados pela luz delicada da fotografia a preto e branco de Arthur Edeson... Muitos defenderam que essa névoa de incerteza é um dos aspetos essenciais da interpretação de Bergman..Na reta final do filme, Rick não tem alternativa senão balear o major nazi que aparece em cena tentando impedir a descolagem do avião onde seguem Ilsa e Victor. A única testemunha desse delito é o capitão Renault. E o que é que este faz quando chegam os outros membros da polícia? Manda-os prender, "os suspeitos do costume"... Eis a prova definitiva de que Renault esteve sempre do lado certo, apesar de uma espécie de cordialidade demonstrada para com os oficiais nazis..Tal como Here"s looking at you, kid, é das citações mais usadas na linguagem corrente, por vezes ignorando-se a origem. Inspirou o título do filme The Usual Suspects (Os Suspeitos do Costume, 1995), de Bryan Singer..A famosíssima derradeira frase de Casablanca, pronunciada enquanto a dupla Louis Renault e Rick Blaine atravessam a pista do aeródromo, não constava no argumento final. Foi o produtor Hal Wallis que insistiu num fecho otimista, a ser acrescentado já depois do fim das filmagens. Basicamente, uma linha que encerrasse a história com um sorriso, respeitando a ironia muito particular daquelas personagens. De um par de sugestões do próprio saiu então o inesquecível "Louis, acho que este é o início de uma bela amizade" -- Bogart foi chamado de volta ao estúdio só para gravar essa frase lendária..dnot@dn.pt