Ocupação de tempos livres
Numa semana política em que não aconteceu muito, excepto a melhoria dos indicadores económicos que excita os devotos do Governo enquanto irrita os opositores e o "chumbo" do TC que espalha sentimentos idênticos por destinatários inversos, o comentador apartidário vê-se forçado a procurar assunto no lugar do costume: os divertidos manifestos da esquerda (há dois ou três por quinzena).
O manifesto mais recente chama-se "3D", porque exige "dignidade", "democracia" e "desenvolvimento" e porque necessita de óculos ridículos para ser compreendido. Na falta dos óculos, de facto não compreendi nada, a começar pela motivação daquilo.
Do que percebi, há um eurodeputado eleito pelo BE que se zangou com o BE e quer voltar ao Parlamento Europeu. Para isso, e para unir a esquerda, criou um partido chamado LIVRE, o qual pondera candidatar-se às "europeias" em lista partilhada com o BE. Pelo meio, paira Carvalho da Silva, que dias depois de negar estar envolvido em qualquer movimento de candidatura às "europeias", aparece envolvido no movimento de candidatura às "europeias" preconizado pelo Manifesto 3D. Pelo menos o homem subscreve o 3D, e o 3D deseja, passo a citar, "desenvolver um movimento político amplo que no imediato sustente uma candidatura convergente a submeter a sufrágio nas próximas eleições para o Parlamento Europeu". Mas se calhar percebi mal, que estas convergências da esquerda através da fragmentação não são para meninos.
Quanto ao 3D propriamente dito, o que dizer? O que, à primeira vista, o 3D diz: desde logo, recusar o dinheiro da troika ("É tempo de defender Portugal de resgates que o empobrecem, desesperam e põem em perigo a liberdade e a democracia"), sair do euro ou até da UE ("É tempo de recusar a submissão passiva de Portugal a uma União Europeia transformada em troika permanente."), correr com o Governo eleito e arranjar uma alternativa pelos meios que calhar ("Os portugueses precisam de uma maioria para governar em nome da dignidade, da democracia e do desenvolvimento.").
Daí em diante, num português digno de vereador camarário, o 3D continua a desfiar o rosário de generalidades. Quer "impedir o sufoco de novos resgates e memorandos" e "devolver dignidade ao trabalho", "erradicar a pobreza" e "reafirmar" que "o Estado Social não está à venda". A proposta do 3D é, cito, "clara", os seus subscritores possuem "um programa político claro" e desejam alcançar uma "plataforma abrangente e ao mesmo tempo clara". A desesperada afirmação de clareza é típica em quem suspeita, com razão, não ter nenhuma. O objectivo de tudo isto é eleger o eurodeputado saído do BE ou o ex-sindicalista? Salvar o BE ou chatear o BE? Refundar a extrema-esquerda exterior ao PCP ou afundá-la de vez?
Provavelmente, nem uma coisa, nem outra, nem outra ainda. Basta percorrer os nomes dos promotores: do arqueólogo Cláudio Torres ao sociólogo Boaventura Sousa Santos, do jornalista José Goulão à viúva Pilar del Rio, trata-se de profissionais do abaixo-assinado, da petição, da convocatória, da resolução e do manifesto. Parafraseando o justo Tom Joad, onde houver um papelinho carente de assinaturas, de preferência acompanhado de plenário e jantarada, eles lá estarão, prontos a defender a Palestina, a Venezuela, o Irão e o Estado "social" contra as investidas de Israel, dos EUA, da sra. Merkel e do Ocidente em geral. À semelhança das criancinhas no ballet, procuram ocupar os tempos livres. De resto, a liberdade nunca é com eles.
Quarta-feira, 18 de Dezembro
Sem comentários
Não sei o que perturba mais, se a bondade simulada se a crueldade sincera. A primeira revela-se por exemplo na "consciência social" daqueles cuja preocupação com os infelizes se esgota na retórica. É a bondade dos que ascendem na carreira à custa da "defesa" dos indigentes (mas não levam nenhum a dormir lá em casa), dos que ganham a vida nas artes ou no jornalismo a "denunciar" a miséria (mas não partilham os rendimentos com qualquer miserável), dos que promovem colóquios a fim de "debater" a pobreza (mas não convidam um único pobre para o coffee break), etc.
Já a crueldade sincera revela-se por exemplo nos comentários dos sites informativos. A recente morte, ao que se supõe por afogamento acidental, de seis pessoas na praia do Meco foi um excelente pretexto para que o género soltasse o verbo. Ferreira Fernandes escreveu a propósito. No DN e noutros media, inúmeros sábios desceram à internet para partilhar teses. Os falecidos tinham alugado uma casa para o fim-de-semana? Estudantes não trabalham, logo não devem alugar casas, por isso foi bem feito. Os falecidos estavam na praia de madrugada? Cidadãos que se portam correctamente não andam na praia àquelas horas, por isso foi bem feito. Os falecidos desconheciam as ondas locais? Os leigos em oceanografia não merecem piedade, por isso foi bem feito. Os falecidos eram jovens? A coisa certamente envolveu sexo, drogas e perdições similares, por isso foi bem feito. Os falecidos não beneficiaram de educação apropriada e ordens para se deitarem à 21.00h? Os valores da decência encontram-se em crise, por isso foi bem feito. Os falecidos frequentavam a universidade de Miguel Relvas? Isto é tudo a mesma cambada, por isso foi bem feito. E por aí afora, com um aterrador regozijo face à fatalidade, uma evidente indiferença face ao sofrimento dos familiares e algumas variações na atribuição de culpas. Para um "comentador" anónimo, que suponho desprovido de ironia, a responsabilidade é do Governo, que ainda não decretou o recolher obrigatório ou o fecho das praias em horário nocturno. Um segundo tarado condena as buscas dos corpos, na medida em que esbanjam o dinheiro dos contribuintes. No fundo, é a mentalidade "Era matá-los a todos" aplicada a quem, por brutal infortúnio, já morreu.
Que gente é esta, Deus meu? Nem sei o que é pior, se a vergonhosa possibilidade de se tratar de uma subespécie nacional, se a claustrofóbica certeza de que a barbárie não tem fronteiras.
Sábado, 21 de Dezembro
O Papa do povo
A 13 de Março último, o DN citava no seu site o seguinte comunicado da Novos Rumos, uma associação de homossexuais católicos: "Neste momento de alegria para todos nós católicos, não podemos deixar de partilhar o nosso profundo desalento pela escolha do cardeal argentino Jorge Bergoglio para Papa. Enquanto homossexuais católicos, não nos podemos esquecer das inúmeras posições públicas e no seio da igreja do cardeal Bergoglio". E prosseguia o representante da Novos Rumos: "O novo Papa, Francisco I, referiu-se ao casamento entre pessoas do mesmo sexo como sendo "um plano de Satanás para enganar os filhos de Deus"." A concluir a notícia: "A associação admite que estas palavras causaram "mágoa e dor a muitos homossexuais católicos em todo o mundo", deixando-os "naturalmente apreensivos" sobre a postura da igreja."
Por estes dias, a Time elegeu Bergoglio "Personalidade do Ano". O Le Monde elegeu Bergoglio "Personalidade do Ano". A The Advocate, vetusta revista gay americana, conferiu-lhe igual distinção a pretexto da sua abertura para com os homossexuais. Se o sr. Bergoglio tivesse ameaçado a devassidão de Hollywood com o Inferno, a Academia dava-lhe um Óscar.
Seleção natural
Não faço ideia se a prova feita aos professores foi a adequada para avaliar as respectivas competências, mas se a ideia era separar os capazes dos restantes, a coisa correu muitíssimo bem. Tal como ninguém escolheria para protagonista do filme o maluco que arruinou o casting à pedrada, os sujeitos e sujeitas que a mando dos sindicatos tentaram boicotar os colegas através de berreiro, violência, arruaça, artimanhas e pequenos delitos não podem desempenhar a profissão. Ou não poderiam, caso o País se orientasse por padrões civilizacionais médios. Em Portugal, porém, os padrões são outros e, após o pandemónio, decretaram a derrota do ministro Nuno Crato. A vitória, presume-se, coube à classe docente, ou à parcela que de docente tem pouco e classe tem nenhuma.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico