A página de um livro presta-se a todo o género de impressão, por isso o que lá está sobre o papel resulta apenas da decisão do autor. Ou dos autores, como é o caso de dois livros de memórias mascarados como literatura de viagem..Não é que os autores, em tudo bastante diferentes, tenham a pretensão de enganar o leitor. Não, trata-se apenas de, antes de abrir os livros, poder pensar-se que em ambos se vão ler relatos de viagem em vez de vida/viagem. Felizmente, esse engano dá-se e ficam disponíveis duas experiências em países tão pulverizados como são, à sua maneira, a Índia, e, por implosão, a União Soviética..O primeiro é de autoria de Octavio Paz, um dos grandes criadores da literatura da América Latina e do mundo. Mexicano nascido em 1914, data que nos leva a um tempo razoavelmente distante como é o ano de 1951, o momento em que estas quase duzentas páginas começam. Que, apesar de terem como título Vislumbres da Índia, a experiência do mundo de Paz obriga a percorrer outros cenários além do que está registado no título: Índia. Afinal, tudo começa em Paris, enquanto o autor como diplomata é destacado para a Índia. Ainda estamos a preparar-nos para descobrir esse país e Paz é enviado para o Japão. Findo o hiato, onze anos depois, o autor regressa para a narrativa deixada em suspenso e inicia-se o verdadeiro vislumbre da Índia..A palavra vislumbre será a mais apropriada para descrever a Índia pois, como juram todos os que lá viveram, jamais se a conhece de um modo integral, situação que o autor não esconde. Mas a sua capacidade de captar pormenores e retratar aquela civilização é muita, tanto assim que o espetro de informações vai da paisagem, alimentação, pensamento, arquitetura, e tudo o que desafia a compreensão (como refere à p.74), como é o caso do sistema de castas, ou a abstração dos sentidos (p. 148). Sendo poeta, Paz dedica muito do espaço de escrita para tratar de questões que ao cidadão normal poucas interrogações suscitariam. Sem dúvida, uma leitura a fazer antes de partir para qualquer parte do mundo..Por seu lado, José Milhazes não evita um pendor mais autobiográfico em As minhas aventuras no País dos Sovietes. Apesar do possível trocadilho com as aventuras de Tintim, o volume é tudo menos propenso à distração. Além de um regresso aos idos da História nacional de 1974, onde se inicia o percurso ideológico que está por trás desta história pessoal, o autor pinta em grande parte do livro a vida de um país diferente daquele que deixou, mesmo que esteja seriamente marcado por julgamentos sobre a ex-realidade soviética. De qualquer modo, ninguém pega no volume descrente de que iria ler tanto um "ajuste de contas" como uma interrogação autobiográfica..Entre as "aventuras" descritas por Milhazes, e iniciadas muito jovem, está a da sua vivência enquanto universitário, o primeiro embate naquela parte do mundo. Também as primeiras férias em Portugal são um bom contraponto. Uma novidade neste género de livros é a existência de inúmeras anedotas a propósito do relato que vai correndo pelas páginas, que se tornam muito sérias..Vislumbres da Índia.Octavio Paz.Ed. Relógio D"Água.197 páginas.PVP: 16 euros.As minhas aventuras no País dos Sovietes.José Milhazes.Ed. Oficina do Livro.332 páginas.PVP: 15,90 euros