Obrigado, Miguel

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Desculpem se isto não é uma crónica de televisão, mas é a que me apetece escrever neste momento. Cheguei a este jornal há quase dez anos pela mão do Miguel Gaspar, que ontem partiu cedo de mais. Foi ele que me chamou para seu adjunto, primeiro para a editoria de Media, e depois para a chefia de redação do DN. Foi com ele que partilhei algumas das mais interessantes discussões televisivas de que tenho memória. Foi ele que, generosamente, abdicou da sua coluna diária aqui no DN para a partilhar comigo, dia sim, dia não, dando espaço à minha opinião. Foi com ele que partilhei entrevistas e reportagens, assinadas a quatro mãos. Foi comigo e com uma equipa extensa e talentosa que ele fez a melhor secção de Media que alguma vez a imprensa portuguesa teve. Os tempos eram outros, os interesses do público eram outros, os jornais eram outros. O DN chegava a ter cinco páginas de Media na sua edição diária. A crise era coisa de países do Terceiro Mundo, ninguém ousava falar da morte dos jornais em papel.

O Miguel tinha a profundidade e a espessura que a Filosofia lhe dera. Mas cultivava uma simplicidade de trato, uma transversalidade de interesses, um despojamento das coisas simples que faziam dele uma das minhas principais referências jornalísticas. Aprendi muito com ele. Num momento falava de um programa internacional que tinha encontrado numa televisão norte-americana. Um minuto volvido, falava, com o mesmo encantamento, do Big Brother ou de uma novela. Lembro-me do entusiasmo com que visitámos a cidade cenográfica da Globo, no Rio de Janeiro. E lembro--me, nessa mesma viagem, do dia em que a então diretora de comunicação da SIC, a nossa amiga comum Renata Ribeiro (que saudades tuas...), conseguiu que pudéssemos acompanhar a reunião de planeamento do histórico Jornal Nacional, da TV Globo. Estávamos no coração do jornalismo da gigante brasileira, sentados no topo de uma mesa com três metros de comprimento, onde estavam todos os editores da redação do canal. Não me esqueço da data: 11 de novembro de 2004, o dia da morte de Yasser Arafat. "Já viste a sorte?", perguntou--me, em surdina. "Estamos à hora certa no sítio certo", acrescentou. É isso: o Miguel, com a sua ponderação e bom senso, estava sempre à hora certa no sítio certo. Até ontem, à hora em que o coração traiu a nossa esperança. O Miguel não merecia um último episódio assim.

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