O vírus novo-rico

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Um incêndio é um episódio dantesco, manifestando a fragilidade humana perante a fúria dos elementos. Mas só se entende aquilo que realmente acontece subindo acima da fornalha e vendo o fogo em perspectiva. Também a tragédia florestal destes meses, sem paralelo histórico, pode ser olhada de perto, atribuindo culpas, punindo responsáveis, acusando pirómanos. Mas acima do fumo, a estrutura da questão mostra um vício profundo do sistema social, que ameaça a sobrevivência do regime. O mesmo que gerou a crise financeira de 2008-13, os processos jurídicos da Operação Marquês e clones, etc.
Portugal tem, pela primeira vez na história, um sistema democrático a funcionar. Apesar dos defeitos, a situação é muito melhor do que a miséria institucional do liberalismo oitocentista ou da Primeira República. Ainda assim, na última década surgiram traços preocupantes que lembram a podridão do século após 1820. Encontramo-los em vários problemas recentes, como o colapso dos serviços de Protecção Civil perante os incêndios do Verão. É sempre a mesma doença que envenena o sistema e lembra velhas crises históricas.

O vício de Portugal é ser rico. Quando se vê fraco, pobre e ameaçado, como de 1974 a 1992, vem ao de cima o melhor de si, vencendo obstáculos intransponíveis. Logo que se sente próspero e abastado, com a pimenta-da-índia em Quinhentos, o ouro do Brasil em Setecentos e os empréstimos da Europa no euro, tudo descamba. O veneno é sempre novo-riquismo, armando aparência sem conteúdo.

O SIRESP é uma pérola tecnológica, com toda a parafernália avançada de comunicações. Não funciona, mas ganharia o prémio num concurso de beleza das instituições de segurança. Este é apenas um exemplo, horrivelmente trágico, da doença que afecta toda a sociedade e a administração a muitos níveis. A eficácia mede-se pelos meios disponíveis, não pelos resultados. Interessa o aparato do mecanismo, não a qualidade de serviço.

A crise financeira nasceu do mesmo efeito. Vencidas as ameaças assustadoras dos primeiros vinte anos de democracia, os bancos portugueses, com o Tratado de Maastricht, entraram no mercado único europeu. Adoptaram as melhores técnicas e procedimentos internacionais, mas presos numa rede de compadrio, favores políticos e interesses sectoriais. Os aparelhos sofisticados de análise de risco eram ultrapassados pelo favorecimento aos amigos da administração. O crédito bancário não financiava o desenvolvimento; alimentava grupos poderosos, teias políticas, serviços públicos, conglomerados empresariais, inchando bolhas especulativas no imobiliário e consumo. Em 2008, a crise global interrompeu a ficção. O dinheiro da troika disfarçou o buraco, mas não impediu a venda do sistema bancário ao estrangeiro, ainda atulhado de crédito malparado.

Os bancos são apenas uma ponta da relação viciosa. Do outro lado estão grandes empresas, Rioforte, PT e tantas outras, onde incompetência e desperdício eram mascarados no luxo dos gabinetes. Os pseudo-empresários dinâmicos, usando os topos de gama Armani, Rolex e iPhone, não passavam de traficantes de influência sem valor acrescentado. Quinze anos de crescimento medíocre, que desde 2013 só parece bom em comparação com a recessão anterior, manifestam a vacuidade produtiva atrás de uma cortina de startups e improvisação turística. A justiça começa a penetrar nas redes de podridão, embora sofrendo também ela da mesma doença de incompetência pomposa, não se saiba se chegará a condenar a pequena parcela da corrupção que conseguiu identificou.

A laboriosidade apática do sistema judicial, trabalhando muito para produzir pouco, é um pequeno exemplo da incapacidade pedante da generalidade da administração, paralela à da banca e das empresas. Nas autarquias, segurança social, serviços públicos e tantas outras áreas, o dinheiro fácil europeu gerou os mesmos vícios do antigo império colonial, onde incompetentes arrogantes escondem vacuidade operacional atrás de uma fachada de eficácia. As captivações, paródia da consolidação orçamental, agravam o problema.

Os sintomas da doença são inúmeros. Pensionistas úteis e activos, mas ociosos com reformas superiores aos descontos, burocratas bloqueando e complicando sem servir, empresas falidas rolando créditos, entre tantos outros, não se resolvem com ministros despedidos, funcionários suspensos ou acusações políticas. É toda a elite nacional que, aparentando estatuto e procedimentos digitais, falha a função. O diagnóstico fica assustador considerando a decadência final dos surtos anteriores da maleita, em 1580, 1820, 1871 e 1910.

O mundo mudou, e talvez os horrores sejam evitados. Mas já há mais de cem mortos: está na altura de compreender a gravidade da doença. É tonto fingir que tudo volta ao normal só porque mudou o governo e a economia recupera timidamente. As toxinas de novo-rico estão na corrente sanguínea. São urgentes reformas profundas e lúcidas, antes que morra mais gente.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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