"O vírus foi subestimado". Em fevereiro, especialistas europeus não perceberam o risco
No dia 22 de fevereiro, uma sexta-feira, é anunciada a primeira morte por covid-19 em Itália - um homem de 78 anos que tinha sido referenciado com sendo um dos dois casos de infeção pelo novo coronavírus em Pádua, na região de Veneto, no norte do país.
Era o princípio de uma tragédia no país da Europa que mais sofreu com a pandemia e um prenúncio daquilo que esperaria o mundo à medida que a doença se espalhava a grande velocidade.
Poucos dias antes, a 18 de fevereiro, trinta especialistas europeus reuniram-se na Suécia para discutir as medidas a serem tomadas em relação a um novo coronavírus sobre o qual ainda muito pouco se sabia.
O El País teve acesso à ata da reunião e publica, esta terça-feira, as principais discussões desse dia. "Os guardiões europeus da saúde subestimaram o perigo do vírus", é o título do artigo que resume aquilo que pensam os especialistas externos que consultaram a ata do Centro Europeu de Controle e Prevenção de Doenças (The European Centre for Disease Prevention and Control - ECDC).
Ler esse documento é especialmente importante para Espanha, que, depois de Itália, foi o país da Europa mais fustigado pela covid-19. Ao dia de hoje, o país tem 231 606 casos confirmados da doença e o saldo de mortes é negro: 27 709.
Nesse dia 18 de fevereiro, enquanto os especialistas hesitavam entre testar a população e o receio de provocar alarme, o vírus já entrara em lares de idosos e nos hospitais, onde os doentes internados com pneumonia grave nos cuidados intensivos já combatiam um novo inimigo, sem que as equipas médicas estivessem preparadas para o enfrentar.
O risco para a população europeia foi considerado "baixo" e não foi tida em conta a letalidade do vírus, ou a necessidade de perceber se este já estaria na Europa. A ata conta com 130 pontos que resume dois dias de discussão.
As principais decisões, nota o jornal espanhol, são adiadas para dali a duas ou três semanas.
A Áustria e a Eslováquia não querem causar medo na população e Espanha alerta até para o risco de "estigmatizar" aqueles que são submetidos a testes de diagnóstico.
O ECDC é, no entanto, um órgão que não decide, mas antes aconselha, com base em conhecimento científico. Mas é o órgão que os países consultam para proteger a população de riscos para a saúde pública.
Até essa terça-feira, 18 de fevereiro, a Europa tinha diagnosticado 45 casos de coronavírus, todos importados. Um turista chinês de 80 anos de Wuhan morrera em Paris, por exemplo.
O ECDC estudou esses casos e destacava que as infeções locais não eram preocupantes. O organismo classificou o risco para a população como "baixo" e o risco para o sistema de saúde como "baixo a moderado".
No entanto, o cientista chefe do ECDC, Mike Catchpole, alertava que "o vírus se transmite muito bem", depois do que tinha sido observado na Alemanha e numa estação de esqui nos Alpes franceses.
O representante da Alemanha estava apreensivo: "as doenças não respeitam fronteiras", alertou. Propõe avançar e começar a falar de "recomendações", mas não foi seguido pelos restantes países.
O Sars-CoV-2, nome que o novo coronavírus recebeu, já estava bem presente na Europa, mas não fora detetado na sua real dimensão. Os critérios para uma pessoa ser testada à nova doença tinham de passar pela sua estadia em Wuhan.
Não havia, ainda, doentes internados com pneumonia grave a serem testados, mas a Dinamarca queria fazê-lo.
"Por exemplo, num caso de pneumonia grave, seria lógico procurar o vírus", alertou o especialista dinamarquês, que queria uma vigilância ativa e o Japão e Vietname debaixo de olho.
Só a 25 de fevereiro, já com um saldo de quatro mortes em Itália, é que os critérios para testar casos suspeitos de covid-19 são alterados.
Na ata, percebe-se ainda que a Finlândia considera "insustentável" a testagem em larga escala, pelos riscos de sobrecarregar o sistema de saúde, mas a Alemanha parece mais prudente: quer testar o maior número de casos suspeitos.
"Distribuímos protocolos de teste de PCR para mais de 20 hospitais" e "executámos mais de 1.000 testes", disse o representante alemão. É também esta uma voz solitária na reunião.
Os primeiros problemas começam a surgir, com a descoberta de que não há equipamentos de proteção nos mercados em número suficiente. Havia ainda outro problema grave, que parece ter sido só a Holanda a detetar: a provável falta de capacidade dos hospitais para responder a um aumento dos casos da doença.
Daniel López Acuña, ex-diretor de Ação Sanitária em Emergência da Organização Mundial da Saúde (OMS) e agora professor associado da Escola Andaluz de Saúde Pública, que leu as atas da reunião de 18 de fevereiro, diz que "o vírus foi subestimado".
"Com o que já era conhecido, pode ver-se que a capacidade de transmitir o vírus não foi suficientemente valorizada, nem o impacto que as viagens internacionais poderiam ter...", frisa.
O que poderá ter acontecido para que nesta reunião os especialistas pareçam tão despreocupados ou hesitantes em aconselhar medidas robustas para conter uma eventual pandemia?
"O medo do que aconteceu com a gripe A, quando os governos foram posteriormente criticados por terem investido em prevenção, influenciou", diz, por sua vez, uma fonte da comunidade médica que pediu anonimato.