O vermelho e o negro

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Um filme sobre uma obsessão e um actor obcecado

O vermelho e o negro

Sangue, vermelho, em quantidade, a golfar de uma ferida e a formar uma poça que não pára de aumentar, só há para o fim das duas horas e picos de Haverá Sangue, de Paul Thomas Anderson (estreia-se hoje), candidato a oito Óscares.

Até lá, o que há mesmo é petróleo. Espesso, a jorrar das profundezas da terra ou a arder na noite, a mascarrar a cara dos operários e a manchar a natureza, a moldar comunidades novas e anunciar economias, invenções e guerras futuras.

Petróleo precioso, escuro como a alma de Daniel Plainview, o prospector individualista que é o herói maldito e o centro de gravidade, a força motriz e o buraco negro de Haverá Sangue, e que o leva a dizer coisas como: "Odeio a maioria dos homens. Só quero ser rico o suficiente para não ter nada a ver com eles".

Até H.W. , o filho que acompanha Plainview para onde quer que ele vá, é usado para obter petróleo, uma "carinha linda" que reforça a imagem de sólido pai de família do prospector, e "adoça" as pessoas para venderem mais depressa os seus terrenos empapados em ouro negro.

Celebrizado pelos seu filmes "corais", como Boogie Nights ou Magnólia, Paul Thomas Anderson deu um golpe de rins em Haverá Sangue, centrado num homem só, que na Califórnia do início do século XX, é movido por uma só obsessão: extrair petróleo.

Uma, e apenas uma pessoa se levanta contra Plainview. O jovem Eli, auto-nomeado pregador evangélico, e falso profeta descarado, que tenta extrair dinheiro a Plainview para a sua igreja na proporção em que este extrai petróleo. A única diferença entre ambos é que o prospector é brutalmente frontal, enquanto que o pregador é oleosamente hipócrita.

Há 50 ou 60 anos, os valores do individualismo, do empreendedorismo e da dedicação árdua ao trabalho, que definiram a sociedade e a economia dos EUA, eram celebrados pelo cinema americano, também ele uma expressão destes. Hoje, parecem ter amargado de tal forma, que um filme como Haverá Sangue pode ter como tema o seu desmantelamento metódico, desencantado, quase masoquista.

Haverá Sangue já foi definido como um filme sobre o papel primeiro construtivo, e depois destruidor, das forças do dinheiro e da religião na Califórnia. Mas Anderson sugere que essas forças já nasceram tortas devido às falhas morais daqueles que as personificam, e que tudo aquilo que originarão - negócios, comunidades, igrejas, uma mentalidade, uma economia - estará manchado desde a primeira hora. E Daniel e Eli são os dois rostos, os duplos arquétipos desses impulsos fundadores.

Mas é Daniel que se agiganta, uma personagem tão fascinante como repugnante, capaz de afecto genuíno pelo filho ao mesmo tempo que expressa o seu absoluto desprezo pela humanidade, que desperta a nossa admiração pela sua perseverança e pelo individualismo antes-quebrar-que-torcer, e a nossa repreensão pelo negrume da sua ganância e a incapacidade de compaixão. Mesmo no final, quando há, enfim, sangue, é impossível odiá-lo totalmente, tal como antes o foi aceitá-lo inteiramente.

Fisica e fisionomicamente invadido pela personagem e pela sua obsessão (até tem petróleo metido nas unhas), Daniel Day-Lewis interpreta Plainview como uma força telúrica, vital, nascido da mina negra das imagens iniciais do filme e feita gente, mas com um défice fatal de humanidade.

Ao som da banda sonora de estática de Jonny Greenwood, Day-Lewis enche, assombra, monopoliza cada plano do filme. E Paul Thomas Anderson aceita, abraça e sagra esse totalitarismo de um actor tão obcecado pelo seu ofício como a sua personagem pelo petróleo, espesso, negro, à espera de ser salpicado de sangue.

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