O título do livro de Liu Cixin é estranho: O Problema dos Três Corpos. Não é original nem fruto da inventividade do escritor chinês (1963), afinal trata-se de um problema de astronomia, mais propriamente da mecânica celeste, na área que se preocupa com as alterações gravitacionais entre um trio de corpos - no caso do livro de três sóis -, tema que serve de cenário a uma história dita de ficção científica, visto que Cixin é um dos proeminentes escritores de género literário, mas também de um retrato da China que emerge e se afirma no xadrez internacional..Este livro desliza sobre teorias físicas que não estão a alcance da maioria dos leitores candidatos à sua leitura, mas o escritor não se preocupa com esse problema que tanto tem preocupado astrofísicos e outros cientistas desde que d"Alembert o fez nascer em 1747. Desde então, muitos dos seus pares dedicaram anos a encontrar soluções científicas para a questão, como foi o caso de Leonhard Euler treze anos depois. Liu Cixin não foge à atração desse problema e tornou-o peça central na sua trilogia que teve recentemente o primeiro volume editado em Portugal - espera-se ansiosamente pela continuação e o final..A publicação deste trio de livros retirou-o do anonimato na maioria dos países além da China, onde tem sido considerado um dos seus principais autores e bastante premiado, conseguindo com eles o efeito imediato de seduzir milhões de leitores. No entanto, como se pode ver neste primeiro volume, a ficção científica anda de braço dado com a realidade mais recente da República Popular da China ao nível dos acontecimentos. Existe uma civilização distante que cobiça o planeta Terra, mas é a repercussão da Revolução Cultural maoista que captura o leitor antes de chegar a um final surpreendente e que obriga a repensar qualquer expectativa de contacto com civilizações extraterrestres..O livro começa por situar a ação: 1967, China. Depois, vai caminhando ao longo de várias décadas, num excecional enquadramento de situações da história e da ciência. É o caso da descrição dos tempos de infância das telecomunicações, do experimentalismo da astronomia, da existência dos computadores básicos e de toda a evolução tecnológica da nossa civilização desde o século passado. Quando a primeira parte da trilogia O Passado do Planeta Terra termina, já o conteúdo das páginas tem laivos de atualidade, até de uma China que ultrapassou os tempos tenebrosos de Mao e prepara-se para liderar o planeta ao querer adiantar-se às restantes nações, como o livro mostra..CitaçãocitacaoCatalogado como ficção científica, O Problema dos Três Corpos é uma fábula sobre o universo desconhecido sem nunca tirar os pés da vasta China e da sua vontade de expansão planetária. A questão da Física em que se suporta surgiu em 1747 e ainda hoje tem várias interpretações. .Esta realidade já é bem conhecida e cada vez mais o olhar sobre o poder da China contemporânea é alterado pelo que acontece no espaço da sua geografia e no alargamento da sua influência. Tanto que quando se acaba a leitura de O Problema dos Três Corpos, digerida a sua história, poderá o leitor dar-se a pensar que além de um livro prodigioso estamos também perante uma das melhores campanhas publicitárias sobre a maravilha que é aquela república a certos níveis do desenvolvimento científico. A China, fica-se com essa certeza, está na frente das tentativas de encontrar outros sítios do imenso universo que nos cerca onde exista alguma espécie de vida..Liu Cixin sabe do que fala quando pega na Revolução Cultural e a coloca como base da inovação dessa busca por vida extraterrestre, mesmo que ao princípio não se perceba o alcance da sua maquinação literária. Mas é ficção científica e todos os artifícios da escrita resultam se houver uma ansiedade em saber mais, criada de forma incessante pelo autor em sucessivos regressos ao passado e fugas para o futuro. Ou seja, entrega à narrativa um ritmo de policial e de intriga histórica que gera sempre mais e mais interrogações, a par das implicações de uma tecnologia como se esta fosse também um protagonista. No entanto, a política está sempre presente, o que fará pensar na campanha publicitária atrás referida, quanto mais não seja porque a História das últimas décadas do atual regime chinês é bem castigada, sendo que, conforme se vai avançando no tempo, essa crítica é suavizada e a cúpula governativa, os militares, a polícia, que orienta os destinos do povo chinês são perdoados em nome da trama. Tudo aquilo que fez sofrer milhões de pessoas, mais do que qualquer outra situação resultou em grandes avanços ao nível da ciência..O conflito entre a Terra e Trisolaris que rege a trilogia pode ser lido como uma metáfora da ressurreição da China após tudo o que lhe aconteceu no século passado e nada melhor do que a ficção científica para tratar dessa reabilitação nacional. Ao utilizar como matéria-prima tudo o que o escritor viveu e assistiu à sua volta, torna-se mais fácil estabelecer uma estrutura perfeita que casa a ficção científica com os manuais de História que retratam a evolução da humanidade, transferindo-a em paralelismos que fazem soar uma campainha no cérebro para uma civilização algures, aquela que é vítima das forças gravitacionais que o problema dos três corpos levantado por d"Alembert é aproveitado como um cenário perfeito para uma espécie que inveja as condições da Terra em vez das daquele astro onde vive..A situação inicial do livro, China, 1967, é bem conhecida de Liu Cixin e enquadra-se nesse duplo sentido de quem aponta defeitos ao maoismo, uma situação que de certo modo interessará às lideranças que se seguiram, desde que feita de modo razoavelmente bem comportado. Afinal, o escritor nasce nessa época, o pai era responsável pela administração de uma mina e a mãe professora, ambos "vítimas" das exigências da Revolução Cultural. No entanto, o autor estudará até à universidade, diplomando-se e trabalhando como engenheiro informático no setor da energia. Toda essa autobiografia está refletida no livro em personagens principais ou secundárias, bem como toda uma série de perfis de protagonistas chineses - e de situações reais - que se identificam sem dificuldade..CitaçãocitacaoLiu Cixin não incomoda o regime atual com o seu crítico retrato sobre os efeitos da Revolução Cultural sobre centenas de milhões de chineses, prova disso é já ter recebido o prémio chinês mais importante para a ficção científica nove vezes..Não será por acaso que Liu Cixin é avesso a falar de questões políticas desde que foi traduzido em duas dezenas de línguas e vendeu mais de oito milhões de exemplares da trilogia, além de ter recebido o prestigiado Prémio Hugo para a ficção científica e o maior galardão chinês para o mesmo género, o Prémio Galaxy, por nove vezes, bem como ter páginas dos seus livros escolhidas para os exames de acesso às universidades do país..As suas declarações à revista The New Yorker são tão assustadoras como as ameaças com que vai construindo a história da trilogia, ao considerar que a democracia não é o modelo certo para a China moderna nem é preocupação da população obter liberdade individual ou desejar uma governação diferente. É também férreo apoiante da política do filho único e dos campos de reeducação, situações necessárias para complementar os esforços do governo para tirar a China da pobreza através da condução de uma política centralizada..Nada do que a custo vai revelando sobre o seu pensamento à imprensa ocidental deverá impedir o leitor de se atirar à leitura desta trilogia, afinal é bem sabido que uma coisa é o autor e outra a obra e, até se ver, Liu Cixin não desmerece a literatura. Aliás, garante que quando começa um livro apenas quer contar uma boa história e que se mantém afastado de uma estrutura pré-definida que o impeça de atingir o objetivo..As influências literárias que confessa ter tido são óbvias no resultado do que escreve: George Orwell e Arthur C. Clark. Em O Problema dos Três Corpos está sempre presente o universo com os pés na terra do primeiro e o universo sem os pés na Terra do segundo. Foi rotulado como o primeiro escritor ciber punk após publicar uma distopia intitulada China 2185 (1989), e endeusado com esta trilogia O Passado do Planeta Terra (primeiro volume data de 2007). E com razão, pois o que esta leitura permite, além do entretenimento, é um confronto como muitas das teorias que se apresentam às escolhas da humanidade para organizar o seu futuro. A mais interessante está mesmo nas últimas páginas e diz respeito à velocidade da evolução humana e até que ponto será inferior a qualquer civilização extraterrestre quando os "estrangeiros" chegarem ao contacto com o planeta Terra..Quem se abstrair das palavras alinhadas ao longo de mais das trezentas páginas de O Problema dos Três Corpos poderá sentir-se como aquele cidadão chinês da década de 1960 e seguinte a olhar para os grandes murais que o invetivavam a participar na grande caminhada para sair de um atraso civilizacional. Mas, todas as grandes questões que este primeiro volume levanta só surgem após o fim da leitura, pois enquanto se a faz falta tempo para pensar senão na história em curso..Brevemente, os que não tiverem o prazer de ler em papel esta trilogia poderão sentar-se no sofá e ver a adaptação a ser feita pela Netflix, mesmo que o Partido republicano tenha questionado a plataforma de streaming sobre as condições impostas por Liu Cixin para a adaptação deste trio de livros, pela certa preocupados com a marca ideológica da China que o autor tão bem irá encabeçar pelos ecrãs de todo o mundo. E, para que os que vivem fora da China se identifiquem como argumento, a cooperação internacional está presente de forma suficiente e a piscar o olho aos indecisos..Para quem gostar do cenário de O Problema dos Três Corpos, não deixe de ler a "ficção científica" de Kazuo Ishiguro em Klara e o Sol e de Ian McEwan em Máquinas Como Eu..Liu Cixin.Editora Relógio D"Água.345 páginas.Abrir o baú da memória para os tempos de infância.O Salteador da Infância Perdida.José Jorge Letria.Editora Guerra & Paz.111 páginas.José Jorge Letria começa por afirmar que foi ao longo da vida um leitor de memórias, de autobiografias e de livros de revisitação de tempos e lugares marcantes. Daí que várias vezes tivesse pensado que chegaria a sua hora de fazer o mesmo que os escritores de tais obras. Este é o primeiro volume da sua revisitação, por certo outros se seguirão apesar de não o referir, e tem como período a sua infância. Começa por se confrontar com uma das grandes questões da Humanidade, a existência de Deus e de relatar que essa convivência foi mais para ouvir as histórias sobre profetas e apóstolos que as "amáveis senhoras da sociedade tradicional de Cascais" lhe contavam do que para partilhar a fé que a mãe professava e o pai olhava de forma cética..É esse prazer por histórias que vai levar o leitor por mais de cem páginas sem parar, no estilo próprio do autor, sempre cativante e "ladrão" de momentos retirados ao passado como se replicasse o título do livro, O Salteador da Infância Perdida. É o caso da desistência em seguir a tradição da caça por questões de convivência com a poesia, bem como de entrelaçar as histórias sobre índios e cowboys com protagonistas de verdade da História, como quando viu passar o ditador cubano exilado Fulgencio Batista, uma entre muitas outras figuras que percorrem o livro. Uma das lições deste Salteador é a perspetiva de como a vida era muito diferente em Portugal na sua infância, motivo que só por si justificava uma leitura destes tempos por muita gente..O Salteador da Infância Perdida.José Jorge Letria.Editora Guerra & Paz.111 páginas.Michelle Obama agora para os mais jovens.Para quem leu o Becoming original, a biografia de Michelle Obama, este livro pouco acrescenta. No entanto, o que o diferencia da anterior edição é ter como objetivo o público leitor mais jovem, aquele que se reflete mais na fotografia da contracapa - a da Michelle criança - do que na mulher que se reconhece como tendo sido uma das recentes inquilinas da Casa Branca. Nesta edição a biografia continua a ser o objetivo principal, mas a forma como a simplifica, sem retirar o peso ou a importância aos factos da sua vida, faz o livro manter a sua importância..Uma das grandes perguntas que Michelle Obama faz neste livro é "quem és tu e no que queres tornar-te?", daí que narre muitos momentos da sua vida e os explique aos mais novos a forma como enfrentar desejos pessoais, as dificuldades em atingir certos objetivos, mas fundamentalmente conta como foi a sua luta para chegar à mulher que ambicionava ser. Mesmo que a um terço do livro conte a sua frustração com a profissão que escolhera e a responsabilidade que sentia por ter "obrigado" a mãe a ter um emprego para lhe pagar os estudos universitários. Ou o momento que perde o pai e percebe que a vida é curta e não deve ser desperdiçada. Não faltam pormenores sofridos, mas também estão relatadas histórias divertidas, como a do pedido de casamento de Barack Obama. A ler, principalmente pelos leitores a quem se dirige esta espécie de biografia..Becoming.Michelle Obama.Editora Nuvem de Tinta.432 páginas