"O trabalho da Companhia do Chapitô continua a ser muito novo"
Era difícil contar uma história de 25 anos e, ao mesmo tempo, ter um filme que valha por si e não pela questão dos 25 anos." Assim começa Elisa Bogalheiro por explicar aquilo que o documentário Os Grandes Criadores não é: "A ideia nunca foi criar uma espécie de homenagem institucional, mas sim pegar nesta marca de tempo - que é relevante para qualquer projeto - e ser capaz de encontrar uma história. Essa foi a parte complicada porque tínhamos de descobrir um fio condutor e saber o que "deitar fora", enquanto tudo nos parecia importante abordar... Mas não queríamos um documentário de colagem de coisas importantes." A realizadora assume aqui um olhar exterior, em contraste com Ramón de los Santos, que coassina o filme, representando ele um olhar a partir de dentro, já que o Chapitô está no seu próprio ADN artístico. "O facto de trabalharmos em conjunto, e de o Ramón ser um insider, contribuiu para uma narrativa mais voltada para os processos criativos do Chapitô, isto é, a forma como a Companhia chegou à linguagem que a define", conclui Elisa.
Os Grandes Criadores surge então de uma vontade de celebrar esta Companhia de Teatro que se distingue no meio português por conceber a comédia como um mundo de possibilidades, com os recursos mínimos e toda a confiança depositada na expressão física do ator. Um ator que é sempre elemento ativo na criação, contribuindo para uma dinâmica interna que não fica presa ao texto. Ramón não fazia ideia do que era isto do Chapitô até se cruzar com um dos seus fundadores e diretor artístico: "Conheci o José Carlos Garcia quando trabalhámos juntos numa série de televisão, para a SIC, Sal [2014]. Nasceu aí uma grande amizade, e apesar de eu na altura não ser ator - nunca tinha sido - ele viu em mim dotes interpretativos, achou que tinha potencial. E um dia convidou-me a conhecer o projeto." A entrada do realizador espanhol na Companhia traduziu-se numa descoberta pessoal que, no fundo, é a razão por detrás do filme que agora se estreia pela mão da produtora The Stone and The Plot, de Daniel Pereira. "Sempre quis dizer "obrigado", ter um gesto de agradecimento para com uma Companhia que, durante cinco anos, fez parte da minha vida e me deu a possibilidade de encontrar um ofício: o ofício interpretativo. Esta foi a forma de agradecer", diz Ramón.
Muito do que se vê em Os Grandes Criadores passa pelos momentos de ensaio onde uma gramática física começa a ganhar forma ao sabor de uma disciplina descontraída, em constante procura da pontuação adequada para o riso. Pode ser a energia aplicada num passo ou o tempo de reação ao outro ator. "Interessava-nos captar certos gestos e maneirismos que se transformam depois em arquétipos de significados globais. E aí o documentário tem também esse lado de poder servir como um portal de descoberta da Companhia, para quem não conhece. Porque o trabalho deles continua a ser muito "novo", na maneira como conseguem falar de temas muito díspares, sempre atuais, através de gestos quotidianos, que todos nós repetimos mas não damos muita importância", sublinha Elisa.
Como se ouve José Carlos Garcia dizer, a filosofia que subjaz a esta escola de teatro (e que faz com que não se pareça com nada no panorama nacional) é a ideia do "brincar juntos". Um princípio de liberdade criativa que fixou um modo de trabalho, segundo Ramón, ainda hoje praticado: "Essa génese continua a existir. Quando a Companhia nasceu, o José Carlos realmente queria fazer algo de diferente, e essa diferença tem que ver com a brincadeira - só brincando é que se chega à peça em si."
Quando perguntamos sobre a mecanização do processo criativo ao longo do tempo, Elisa nota, enquanto observadora, que houve um crescimento natural: "Há uma procura muito única e genuína no início que passa por experimentar, experimentar, experimentar... Quando a descoberta acontece há uma certa mecanização do processo. E hoje em dia provavelmente está-se mais à procura do que se quer dizer." Palavras de quem percorreu muitas horas de material de arquivo e sentiu "uma evolução enorme na linguagem e no modo como a Companhia se vai relacionando; entre eles, o corpo, a fisicalidade e o modelo de experimentação."
O crescimento da técnica artística também se percebe, nesta história de 25 anos, através da progressiva transição do registo clown para um teatro mais auxiliado pela palavra. "As primeiras peças estavam mais próximas das artes circenses do que estão agora. Eles foram afinando os movimentos e os gestos, introduzindo cada vez mais as palavras e transformando essas peças de maneira a criar a comédia à volta de uma estrutura criativa que acaba por ser reconhecida - as pessoas conseguem rir-se aqui e conseguem rir-se na Colômbia", diz a realizadora, levando-nos a outro aspeto da vida do Chapitô: a itinerância.
A flexibilidade com que os atores se adaptam a diferentes palcos e línguas é a prova de um rigor que está para além da brincadeira. "Não é que outras companhias em Portugal não tenham itinerância, porque têm, mas não em períodos tão longos, e nem itinerâncias tão grandes, internacionais, a passar por várias cidades - o Chapitô chegou a estar meio ano fora de casa. E isso é muito desgastante, porque não se trata do glamour de viajar e estar em vários sítios. Muitas vezes eles chegam de noite, entram no teatro e depois seguem para o próximo." O ponto máximo do profissionalismo está ainda, porém, na preparação das peças em três idiomas: português, inglês e espanhol. "E não é raro estreá-las nas línguas estrangeiras. Isso acontecia sobretudo no tempo do encenador John Mowat, em que eram apresentadas primeiro em inglês."
Com uma equilibrada combinação de entrevistas, imagens de arquivo, gravações de ensaios e um toque de encenação, Os Grandes Criadores cumpre o seu objetivo de não ser apenas um filme sobre os 25 anos da Companhia do Chapitô. É antes um convite para entrar no universo criativo de uma aventura de palco.
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