O terrorista intelectual

Umberto Eco ficou mundialmente famoso com 'O Nome da Rosa'. Trinta anos depois, acusam-no de ser anti-semita no último romance. Ele nega...
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O próximo romance do escritor italiano Umberto Eco é o mais polémico que já escreveu. Anti-semita tem sido o rótulo mais suave que foi colado a esta espécie de folhetim ao estilo de Alexandre Dumas, em que ao longo das mais de 500 páginas de O Cemitério de Praga destila o pensamento de outras épocas sobre os judeus pela voz de uma única personagem inventada - o capitão Simone Simonini - e de algumas dezenas de figuras verdadeiras - entre as quais os judeus Fröide (Freud) e Marsh (Marx) - que foi desenterrar à história e à literatura.

Ao mesmo tempo, desenterra também uma das maiores farsas em documentos históricos forjados, o Protocolo dos Sábios do Sião, cuja autoria é atribuída aos judeus, que o terão preparado num encontro no cemitério de Praga que dá título ao livro.

Para além das diatribes atribuídas a este povo, há mais duas instituições envolvidas nessa tríade de blasfémias: a dos jesuítas e a dos maçons. Basta ver as palavras com que descreve a dado passo a Ordem de Jesus para entender o que diz sobre as outras duas: "Os jesuítas são maçons vestidos de mulher." Para os judeus haverá a seguinte definição, entre dezenas: "O hebreu sente-se pelo mau cheiro, que os ajuda a reconhecerem-se, por estes e outros sinais, como acontece com os pederastas." E, para a maçonaria, as maquinações habituais.

Não será por acaso que o autor do romance histórico unanimemente reconhecido a nível planetário por mais de 20 milhões de exemplares impressos, O Nome da Rosa, resolve pôr no fim do volume umas "Inúteis explicações eruditas". Aí irá explicar que a única personagem inventada é o protagonista Simonini, mas que todas as outras "existiram realmente e fizeram e disseram as coisas que fazem e dizem neste romance". Esclarece ainda: "Também para figuras que aparecem com o nome fictício apenas porque, por economia narrativa, fiz dizer a uma pessoa (inventada) aquilo que, de facto, fora dito por duas (historicamente reais). Para evitar equívocos, Umberto Eco deixa também nas últimas páginas uma cronologia na qual elenca os factos e os autores em que tiveram origem as "maledicências" que pôs neste Cemitério.

Equívocos, aliás, é o que não tem faltado a Umberto Eco, e que vêm de todos os sectores da sociedade. A Igreja, que quase só se vê beliscada no que respeita ao um dos seus papas, veio logo criticar duramente o livro no jornal do Vaticano através de um artigo da especialista Lucetta Scaraffia, em que definia o romance como "aborrecido e de difícil leitura". Por seu lado, o rabi de Roma, Riccardo Di Segni, também não se ficou por palavras brandas e considera O Cemitério de Praga "pouco científico" e apreciou muito pouco a criatividade literária do escritor no que toca à realidade histórica.

Talvez por este ambiente criado na ressaca da publicação do romance, só muito a custo Umberto Eco aceita comentar os temas da actualidade política e social, como é o caso da italiana. Escuda-se na justificação de que só pretende ser entrevistado sobre O Cemitério de Praga e daí só sairá quando muito pressionado. Lá se conseguem umas palavrinhas sobre o primeiro-ministro Silvio Berlusconi, o Julian Assange da WikiLeaks e, também após muito custo, uns pensamentos sobre o fim, ou não, do papel como suporte da escrita. Eco prefere mostrar as vitrinas que tem no amplo salão da sua residência milanesa, onde guarda várias primeiras edições das obras aonde foi inspirar-se e encontrar um bom lote de acusações para rechear este seu novo e polémico romance. No entretanto, fuma a sua cigarrilha tecnológica, levando-a frequentemente à boca, avermelhando a ponta e lançando algum vapor de água, mas sem fazer fumo algum.

O piemontês Umberto Eco recebe o DN na sua casa de Milão, situada em frente a uma das torres do Castelo de Sforzesco. Não quererá repetir a pose fotográfica tirada há algumas décadas, com uma das torres ao fundo, e só posará de costas para a janela. Na foto antiga tem os braços apoiados nas ombreiras da janela, gesto que deve ser habitualmente seu pois irá repeti-lo quando se deixa fotografar junto a uma ínfima parte da sua biblioteca. Na actual, aparece descontraído e sem o ar pensativo de outros tempos.

A casa parece uma biblioteca medieval dos nossos tempos, com códices e livros raros dentro de vitrinas; as paredes decoradas com ilustrações de catedrais e monumentos de há vários séculos e objectos antigos por aqui e por acolá. Da sala de entrada, para além do salão onde recebe as visitas, saem dois corredores cobertos de estantes, que vão dar a outras divisões da casa cujo acesso é reservado aos mais íntimos. À porta, na entrada do prédio, estão duas campainhas que poderão identificá-lo a grande custo, uma com as suas iniciais, UE, que também poderiam ser as de algum departamento da União Europeia, e outra com o nome da sua mulher, que tem entre o primeiro e o terceiro a palavra Eco, que facilmente passa despercebido a quem não for detective.

Além de se recusar a responder às perguntas da actualidade, Umberto Eco não se disponibiliza muito facilmente a falar sobre os temas que o tornaram conhecido como investigador. Dirá que esse seu lado já é bastante conhecido e que não tem nada de novo a revelar. De novo pressionado, lá fará uma, como define, "declaração oficial" sobre o seu pensamento sobre o futuro dos livros, mas, vindo do nada, falará da WikiLeaks e até de Berlusconi. Prerrogativas de ser uma estrela mundial da literatura, tomadas entre sorrisos e nãos...

No fim da entrevista, insistirá durante segundos para saber se ficou tudo esclarecido sobre os equívocos criados - e a aparecer com a tradução portuguesa - com o seu romance O Cemitério de Praga. O escritor parece querer aproveitar a oportunidade para evitar por antecipação as polémicas que possam surgir, até porque Portugal não está entre algumas das 40 apresentações oficiais - várias contarão com a sua presença - marcadas para os próximos meses. Já foi a Espanha, e basta para a Península Ibérica, como justificará com uma curta expressão: "Daí recebê-lo [ao jornalista]." Mesmo assim, sorri quando recorda a vinda a Portugal para pesquisar sobre os templários do Pêndulo de Foucault e pronunciará correctamente o nome da cidade de Tomar onde fez muita pesquisa. Por uns momentos, fica enlevado e repetirá: Tomar... Tomar...

Diga-se que o Umberto Eco com que nos confrontamos fisicamente já não é o tradicional Umberto Eco. A barriga continua proeminente mas da barba, que era a sua imagem de marca, só resta um bigodinho que faz lembrar o Oliveira da Figueira das histórias do Tintim. O escritor confessa que a barba ficou muito branca enquanto o bigode se mantinha preto. Confessa: "Fiquei com um ar de pessoa má, demasiado semelhante ao Genghis Khan." Como não queria permanecer com esse aspecto, e contra a vontade da própria mulher, Eco eliminou os pêlos e mostrou as formas do rosto que todos desconheciam até há meses. Tanto que, se nos cruzássemos na rua com o escritor, sem ter visto as suas fotografias mais recentes, seria mais um piemontês de suspensórios que migrara para Milão.

A Eco, antes de começar a entrevista, apetece-lhe um café e a empregada imigrante que abrira a porta minutos antes voltará ao salão para servir o escritor e o jornalista. O autor exige sentar-se no sofá costumeiro e aguarda pelas perguntas, com alguma impaciência. Afinal, a hora concedida estava a contar há já alguns minutos... Confirma com o interlocutor qual é a língua em que se vai falar. A resposta é o francês, que, aliás, tinha sido solicitado via agente anteriormente. De vez em quando, colocar-se-ão algumas palavras britânicas pelo meio, quando falta a expressão gaulesa exacta. A única frase que o entrevistador cita ao escritor em italiano, de sua própria autoria, não é entendida por Umberto Eco! Tal como não será entendido o nome do único português - fora Fernando Pessoa e José Saramago - que Eco poderia conhecer, o do ex-treinador de futebol do Inter de Milão José Mourinho, que, ao ser referido, tem como resposta: "Não conheço mais escritores portugueses de nome." A razão foi, decerto, a pronúncia do entrevistador.

Eco continua impaciente pelo começo da entrevista e há que avançar rápido para o satisfazer. Até porque quase parece que a entrevista vai acabar antes de se iniciar, visto que, após a primeira questão ser colocada - que era mais uma afirmação -, Eco fica calado durante uns perigosos segundos. Será que não percebeu o que se lhe pergunta? Não, não é isso... Mais parece que ficou irritado com o género de pergunta e que se ficará por ali mesmo...

Este livro faz de si um terrorista intelectual.

... Sim... O Cemitério de Praga é mais do que terrorismo intelectual. É um livro evidentemente racista, e é fácil achar-se que é contra os judeus e ao, mesmo tempo, também é contra os alemães ou os franceses. Simoni Simonini é um falsário e o espião por excelência, com todos os cinismos que correspondem aos espiões da actualidade, dispostos a vender o que têm a serviços secretos diferentes, até a mesma história a vários compradores. Foi isso que me fascinou.

Ao mesmo tempo que o Protocolo?

Tentei compreender a psicologia de alguém que está disposto a vender tudo e como se chegou à fascinante produção do Protocolo dos Sábios do Sião. Na origem do meu romance está a total falta de moral do protagonista, que me fez ir ficando constantemente escandalizado pela forma de fazer o Protocolo. Um documento falso, típico como muitos outros do género que foram produzidos ao longo dos tempos - mesmo tendo sido demonstrado que era forjado já em 1921, nada aconteceu. Desde então que se continua a ler O Protocolo dos Sábios do Sião como se fosse verdade. É leitura nos países árabes; está à venda em livrarias e lojas de ciências ocultas; em consulta na Internet e com muitos defensores da sua autenticidade que continuam a afirmar a verdade do seu conteúdo.

Mesmo após a sua desmitificação?

Dizem que é isso mesmo que querem que se pense: que são falsos porque o que contam é a verdade. É um fenómeno extraordinário e que mostra como o racismo é tão violento que não precisa de provas verdadeiras que o contestem.

Não receia que o leitor confunda o que pensa com o que escreve?

Escrevi muito ao longo da minha vida sobre o Protocolos, em vários ensaios, por exemplo, e houve um momento em que me surgiu a ideia de fazer um romance sobre ele. Que o leitor confunda é uma situação inevitável, mas devo dizer que há duas objecções a essa questão. É verdade que o leitor pode pensar que isto é a sério - mas então não se escreveria jamais um livro. Nem mesmo Dostoievski poderia ter escrito Crime e Castigo porque os argumentos de Raskolnikov são muito persuasivos. Só que a maioria dos leitores não vai matar uma idosa depois de ter lido o livro. É verdade que há sempre leitores que identificam a opinião das personagens com as suas próprias, mas isso é fatal. Haverá sempre leitores que farão essa confusão, mas, repito, se o tivermos em conta não se escreveria.

Mas nem Simonini nem as outras personagens parecem apenas ficção, até pelo que dizem!

Tudo começa com a carta que o capitão Simonini - que é o único inventado - escreveu ao abade Augustin Barruel, que é uma personagem real [padre jesuíta e polemista francês católico fundamentalista]. Se Simonini é inventado, Barruel não, que terá escrito uma carta anti-semita que foi reproduzida várias vezes. Até poderíamos pensar que o abade não terá existido, antes inventado pelos jesuítas, mas é ele o autor dessa carta que eu atribuí ao capitão Simonini. Foi a partir desse documento que eu criei o meu capitão, enquanto todos os outros que surgem no livro dizem mais ou menos o que escreveram nos seus livros.

Mas este livro, não nos enganemos, é uma provocação?

Sim, é verdade.

Uma grande provocação aos judeus, jesuítas e maçons, entre outros?

Espere lá! A comunidade intelectual judia reagiu muito bem, à excepção das objecções do rabi de Roma. Até houve um debate em que participei e as reacções foram favoráveis. Até me disseram: ajudou a compreender as razões do anti-semitismo. A reacção da intelligentsia judia foi favorável e várias personalidades da crème de la crème da cultura judia italiana aceitaram favoravelmente o livro.

Nem o Vaticano, através do seu jornal Osservatore Romano, deixou de criticar esta ficção!

Eles ficaram irritados porque o papa Leão XIII não ficava muito bem na fotografia neste romance. Afinal, esse Papa foi muito naïf na história de Léo Taxil [autor de uma famosa farsa antimaçónica francesa] e muito influenciado pelos jesuítas. Que foram realmente muito anti-semitas.

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