Quando ao fim da noite deixa o Faia, restaurante onde há 14 anos canta fado, Anita Guerreiro mistura-se com os jovens de copo na mão, em pleno Bairro Alto, e desce a rua até à sua casa. Às vezes reconhecem-na. Chamam-lhe "avó Batanete". Entoam, desafinados, "cheira bem, cheira a Lisboa". Gritam "abençoada pastilha", lembrando um anúncio em que Anita participou. A fadista não se intimida com estas intervenções, sinal de que, ainda hoje, com quase 70 anos, mantém a sua popularidade.."A televisão faz maravilhas. Conhecem-me em toda a parte, até no estrangeiro", confessa Anita Guerreiro que, depois de no ano passado ter comemorado os 50 anos de carreira, acaba de editar (pela Movieplay) uma antologia com 30 dos seus maiores êxitos no teatro de revista. Para que aqueles jovens que se metem com ela na rua possam alargar o seu repertório e começar (quem sabe?) a cantar também os refrões de Ai, ai Lisboa, Catavento ou Campinos do Ribatejo..Na verdade, Anita chama-se Bebiana, em homenagem a uma prima que morreu muito jovem. Foi como Bebiana que, ainda miúda, começou a cantar e a dar nas vistas nos espectáculos da escola e da colectividade do seu bairro, o Sport Clube do Independente. Aos sete anos já era solista. "Fiz coisas muitos boas como amadora, nem sei se não terei feito números melhores como amadora do que como profissional", recorda. Foi também como Bebiana que em 1952 se apresentou a concorrer ao "Tribunal da Canção" do Expresso da Seis e Meia, um dos programas radiofónicos com mais sucesso na altura. Com 16 anos, a costureira que chegou ao Teatro Politeama acompanhada por uma vizinha ("fui às escondidas do meu pai") surpreendeu os responsáveis do programa - o apresentador Marcos Vidal e o maestro Miguel de Oliveira - e saiu de lá com um contrato na mão e um novo nome Anita Guerreiro. .Deixa os trapos para se tornar cantora actriz profissional. Passado pouco tempo - ainda menor e "entregue" à responsabilidade da cantora Maria Sidónio - já andava em digressão pelo país. "Tenho muito orgulho na minha vida mas, para mim, este trabalho é como se estivesse numa fábrica. Há muitas pessoas que pensam nisto como uma montra, e acho que fazem mal. Isto é um trabalho, que deixou de ser a coser e a fazer lingerie para passar a ser a cantar, que é o produto que talvez eu melhor venda", explica. Anita nunca estudou, nem teve aulas de canto. "É um dom inato. Ainda pensei ter aulas mas a professora recomendou-me que não o fizesse. Treinando a voz perderia os trinados, perderia o meu carisma", justifica- -se. "Aprendi com a experiência, coloco a voz à minha maneira, sei defender-me. E sempre tive muito cuidado com a dicção." .Desde o início da carreira, uma decisão tornou-se óbvia "A minha musa inspiradora, como de milhares de pessoas, era a Amália Rodrigues. E, como não tinha repertório, estreei-me com o Fado do Adeus e o Fado da Saudade. Mas, desde então, nunca mais cantei nada da Amália. Nunca quis cantar nada de ninguém. Tive muita sorte e, desde o início, apareceram pessoas a oferecer--me músicas e poemas. O que canto é tudo meu." Como se confirma na antologia agora publicada, quase só com criações de Anita Guerreiro (ou seja, músicas que se popularizaram primeiro na sua voz, como Cheira a Lisboa). Entre as músicas que interpreta sem lhe pertencerem encontram-se alguns fados de Helena Tavares, como A Rua dos Meus Ciúmes e Eu Cheguei Muito Depois (incluídos no disco). "A minha voz sempre foi facilmente identificada e eu nunca me pareci com ninguém senão comigo", garante..Com uma vasta experiência no teatro de revista, Anita Guerreiro viveu os tempos áureos do Parque Mayer, "quando aquilo parecia uma feira, com as meninas dos tirinhos, o algodão doce e as farturas, e com os teatros todos a funcionar", recorda. "Ao fim-de-semana era lindo, o Parque estava cheio de pessoas." Naquele tempo, Anita estreava um fado numa noite e, no dia seguinte, ele já era cantado em Lisboa. "Olh'òs fados da Anita", apregoava o ceguinho que vendia as letras nas ruas. Agora, os tempos são outros. E, apesar de o disco se chamar 50 Anos de Teatro de Revista 1955-2005, a verdade é que há já muito tempo que a fadista não faz teatro. Fez várias telenovelas, entrou na série de televisão Batanetes e canta o fado, de segunda a sábado, no restaurante Faia, a sua segunda casa. Com 51 anos de carreira, Anita Guerreiro declara "Claro que a minha vida não são só alegrias, também tem tido revezes, mas estou feliz, sobretudo quando estou a cantar ou a representar."