A 6 de abril de 1933, com 37 anos, Antonin Artaud propôs ao público da Universidade Sorbonne, em Paris, uma conferência com o título O Teatro e a Peste, na qual expôs a sua a analogia "entre a vítima da peste que persegue visões, em esganiçada correria, e o ator, em perseguição dos seus sentimentos". A peste instala a desordem, provoca conflitos e permite a revelação de verdades até aí ocultadas pelas regras sociais. Tal como o teatro deve fazer..O texto haveria de se tornar famoso, publicado no ano seguinte no volume O Teatro e o seu Duplo. Sobre a conferência, o único relato existente é o de Anais Nin, nos seus diários: "Tinha o rosto em convulsões de angústia e os cabelos ensopados em suor. Os olhos dilatavam-se, enrijava os músculos, os dedos lutavam para conservar a flexibilidade. Fazia-nos sentir a secura e o ardor da sua garganta, o sofrimento, a febre, o fogo das suas entranhas. Estava em tortura. Berrava. Delirava. Representava a sua própria morte, a sua própria crucificação. As pessoas começaram a ficar de respiração cortada. Depois desataram a rir. Toda a gente ria! Assobiava. Por fim, as pessoas foram saindo uma a uma, com um grande ruído, a falar, a protestar. Ao saírem, batiam com a porta.".Foi disto que John Romão se lembrou quando, em março, as notícias da pandemia de covid-19, começaram a dominar a atualidade e, pouco depois, o governo decretou o encerramento das salas de espetáculo, primeiro, e o estado de emergência, a seguir. "Muita gente terá ido reler textos que tinham a ver com a peste, houve várias pessoas que se concentraram no texto do Camus e eu, porque gosto muito do Artaud, foi reler O Teatro e a Peste e fixei-me nesse episódio, de 1933", conta o ator, encenador e diretor da bienal Boca. "Encontrei um paralelismo entre esse episódio e aquilo que estamos a viver agora: ali havia um público que abandonava a sala, como se aquele artista fosse um perigo, e agora temos este vírus covid-19 que representa também uma espécie de perigo e é um atentado ao teatro, porque impede que o público esteja no sítio que lhe pertence que é a sala de espetáculos", explica..Foi então que teve a ideia de trazer o texto do Artaud para os teatros que se encontravam (quase todos ainda se encontram) fechados e vazios. Desde logo, para chegar ao seu público, o projeto implicava que a representação fosse filmada - e foi aí que entrou a realizadora Salomé Lamas - e era importante ter vários intérpretes em diferentes locais, que repetissem sempre o mesmo texto (que é o de Artaud, apenas com ligeiros cortes), sublinhando assim o caráter ritualista do teatro e também "o poder do contágio do vírus"..Tudo começa esta sexta-feira, com a transmissão da interpretação de Albano Jerónimo no Teatro Romano de Lisboa e continua, ao longo de quase um mês, com as interpretações de Cucha Carvalheiro, Mónica Calle, Igor Regalla e o próprio John Romão, sempre com a música de Gabriel Ferrandin.."Foi tudo muito rápido", diz John Romão sobre o processo. Se há algo que define este projeto é a sua urgência. "Queríamos guardar esse impulso inicial, esse ímpeto de termos de fazer isto agora enquanto é tempo. Enviava-lhes o texto e depois fazíamos uma leitura no dia antes ou no próprio dia em que íamos filmar. Havia uma meia dúzia de notas de encenação, que são transversais a todos. É uma partitura muito aberta. Era isso que nos interessava.".É por isso que Romão hesita até em usar o termo espetáculo. "Trata-se de uma recriação da conferência de 1933. Artaud estava sentado a uma grande mesa com Renée Allendy, o organizador das conferências. Aqui os atores vão estar acompanhados dos diretores dos teatros, que fazem uma apresentação e depois são interlocutores silenciosos", explica John Romão. Há pouquíssimas notas de direção, um cenário minimalista, quase nenhum ensaio..Tal como Artaud defendia o teatro como uma revelação, também aqui "os atores estão muito expostos nessa procura que estão a fazer, quase em direto", explica Romão. "Eles estão a tentar entrar nesse estado psicológico, espiritual, do Artaud e isso é muito bonito de se ver. Não vemos a personagem, não vemos ninguém a fazer de Artaud, não, o que vemos é o ator à procura, como se fosse uma primeira aproximação.".O mesmo diz Salomé Lamas: "Existe uma sobreposição entre a preparação (escrita e desenvolvimento) do projeto e a sua produção. São coincidentes. E para mim isso é muito importante neste projeto. Existe um mergulho de cabeça. Por isso quando me perguntam se isto é uma reflexão sobre a conferência do Artaud ou uma reflexão sobre o momento em que vivemos, eu respondo que não creio que seja uma reflexão, é antes uma reação, sem grandes filtros e sem grandes preciosismos, porque os tempos não os permitem e porque queremos manter aquela energia inicial, aquele voluntarismo de o que é que é preciso fazer. Não sentimos essa necessidade que de isto ter de ser uma coisa acabada"..A realizadora sente-se quase como uma documentarista, que regista esta reação: "Isto serve como documento, não é um live streaming mas é quase como se fosse. Aquilo que nós estamos a fazer é a reagir e a registar para que depois, num outro momento, mais tarde, se possa refletir"..Sem público, mas num teatro, estas interpretações são ao mesmo tempo um ensaio e um produto acabado. Este é, diz Romão, "um objeto que evoca um espaço onde deveríamos estar coletivamente", por isso, "mesmo sem público, este projeto reclama a presença física"..De 31 de julho a 23 de agosto, existem cinco datas de estreia marcadas:.31 julho, 21.00: Teatro Romano - Albano Jerónimo com Lídia Fernandes; 2 agosto, 21.00: São Luiz - Cucha Carvalheiro com Aida Tavares; 7 agosto, 21.00: TBA - Mónica Calle com Francisco Frazão; 12 agosto, 21.00: LU.CA - Igor Regalla com Susana Menezes; 15 agosto, 21.00: Teatro Viriato - John Romão com Patrícia Portela.As transmissões são feitas nesses dias no site da BoCA, e no Facebook e YouTube da BoCA, da EGEAC e do teatro em causa (exceto o LU.CA que não fará as transmissões). No dia seguinte, o vídeo é partilhado no Facebook dos teatros parceiros..Mas John Romão garante que, pelo meio, irão sendo anunciadas outras intervenções feitas por intérpretes muito variados, em vários espaços em Portugal e não só, filmadas com métodos mais caseiros. O vírus está à solta, vai-se disseminando.