O Super-Homem e o Pai Natal num comboio ao circo

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Crumbs (2015) é o primeiro filme de ficção científica pós-apocalíptico da Etiópia. É essa a frase mais vezes usada para o descrever ou, pelo menos, a que mais vezes se encontra na (relativamente escassa) informação disponível online - resquícios da sua meteórica passagem pelo circuito dos festivais. O apelo da etiqueta talvez obedeça mais a um impulso promocional do que a uma intenção descritiva; há algo de agradável, de uma perspectiva "ocidental", em repetir aquele arrastão de exotismo classificativo. Na verdade, o filme resultou de uma salada genética ainda mais variada: filmado na Etiópia, com diálogos em amárico, um título em inglês, um realizador espanhol, e uma misteriosa co-produção finlandesa. Mesmo a designação "pós-apocalíptico" esconde mais do que revela, e não ajuda propriamente a calibrar expectativas. Desde as suas origens, e passando por todos os seus documentos centrais (de O Último Homem de Mary Shelley ao Deus das Moscas de Golding, aos vários cataclismos zombies), o género sempre foi uma espécie de reserva estratégica de pessimismo antropológico, especializado em pressupor uma inevitável regressão social generalizada como consequência inevitável do colapso das actuais estruturas de organização social. A ideia básica é que 15 minutos depois de o multibanco deixar de funcionar, toda a gente vai andar de tronco nu, cara pintada e lanças em punho.

Nada podia estar mais distante da inocente displicência com que Crumbs deambula pelos seus cenários despovoados, olimpicamente desinteressado dos vários desafios logísticos da sobrevivência. A vida depois do fim não implica aqui uma luta sem tréguas por recursos subitamente escassos - talvez porque a escassez já era uma condição prévia, e portanto familiar. Existem aparentes ameaças físicas ao protagonista, mas a sua aura aproxima-se menos da violência Mad Max do que das farsas pastorais de Wodehouse, onde o maior perigo é uma indiscrição protocolar ou um acidente de bicicleta.

O centro da história é Candy, que vive com a sua noiva Birdy num salão de bowling em ruínas, rodeado de prados verdejantes e não muito distante de um deserto de minas abandonadas e ferros-velhos, onde Candy passa o dia à procura de objectos valiosos e a tentar não ser assaltado por bandidos equipados com bisnagas e cruzes suásticas. O seu património é minimalista, a jóia da coroa um disco em vinil de Michael Jackson, que guarda para um dia conseguir financiar o casamento. No céu, vê-se uma nave espacial na bizarra forma de mão humana, cuja origem nunca é explicada, mas que Candy acredita ser uma relíquia do seu planeta natal. A nave parece tão desabitada e esquecida como tudo o resto, até começar a dar sinais de vida. Ao mesmo tempo, o mecanismo de devolução das bolas do salão começa a emitir mensagens crípticas, cuja proveniência parece ser um carrancudo Pai Natal. Candy decide visitar uma "Feiticeira" que o aconselha a partir numa viagem heróica para descobrir o seu destino. Birdy despede-se dele oferecendo-lhe um talismã: uma espada de plástica fabricada não por "Mattel" mas pelo ainda mais mítico Carrefour -- o "último grande artista", explica ela.

Esta é, já agora, a piada central do filme, e aquele que parece querer ser o seu "tema" dominante. Artefactos que reconhecemos como produtos de linha de montagem da nossa cultura popular são alvo de novos e transcendentes significados. Há uma sequência recorrente na qual o enigmático proprietário de uma loja de penhores negoceia o preço de vários ícones que lhe trazem, e cujas histórias inventadas ele vai relatando solenemente: "Tartaruga Ninja.... Fabricada industrialmente no terceiro século, a partir de um molde de borracha e com tinta de acrílico... usada por guerreiros Molegon como amuleto... O Vinil de Michael Jackson... É dito que existiu um outro Michael Jackson antes do Apocalipse... Talvez fosse um agricultor naquilo a que chamavam os Estados Unidos... A sua música era usada para dar coragem aos guerreiros antes da batalha". Todo o universo é tutelado por estas divindades improvisadas. Despertando de um sonho febril e premonitório, Birdy dirige uma oração espontânea a uma colecção de santos ou falsos Papas: "Einstein o Quarto, São Pablo Picasso, Stephen Hawking III, Justin Bieber VI, São Paul McCartney o Nono!" Mais tarde, volta a rezar pelo regresso seguro do seu noivo frente a um altar ornamentado com uma foto de Michael Jordan.

O sentido de humor do filme, felizmente, não se esgota aqui, e a melhor piada acaba por explorar uma avenida diferente: a inflexibilidade burocrática do Pai Natal, que exige o cumprimento rigoroso de um processo e não se mostra interessado em recompensar a "iniciativa" de quem o tenta contornar. (O "clímax" do filme é um duelo físico entre o Pai Natal e um Candy vestido de Super-Homem). A ideia de que os nossos detritos culturais podem vir a determinar o denso folclore de quem não lhe conhece as origens é potencialmente interessante, mas não original. A figura do antropólogo de um futuro distante, perplexo perante as ruínas do nosso prosaico presente, e extrapolando conclusões absurdas dos nossos objectos mais mundanos é mais antiga como o próprio género da ficção científica - o tropo em si mesmo uma extrapolação oblíqua de um dos textos mais inovadores e secretamente influentes na história da Literatura: as Cartas Persas de Montesquieu.

Há outros precedentes mais óbvios: Um Cântico Para Leibowitz, em que uma teologia inteira é fundada a partir de uma corriqueira lista de compras do séc. XX ("500 gramas de carne curada, seis bagels", etc); e até uma infame comédia popular dos anos 80, Os Deuses Devem Estar Loucos, com a sua sobrenatural garrafa de Coca-Cola. Crumbs ocupa um despreocupado ponto intermédio entre estas duas referências e, em sua defesa, parece menos interessado em artilhar uma "mensagem" coerente do que em dispersar significados por meia dúzia de iterações da mesma piada, até que eles se organizem sozinhos. Com um pouco de boa vontade, incentiva-nos a ponderar as migalhas de um passado irrecuperável que sobrevivem no nosso próprio tempo, e como alguns modos de interpretação desses fragmentos são por vezes usados para legitimar práticas dúbias e hierarquias estáticas.

Em algumas entrevistas dispersas pela internet, o realizador Miguel Llansó (ex-funcionário da embaixada espanhola em Adis Abeba), aparenta pertencer à segunda das duas mais promissoras sub-categorias de realizador: aquele cujos instintos são infalivelmente muitíssimo mais interessantes que os seus "pensamentos" (categoria que também inclui, por exemplo, Antonioni e John Carpenter). Entre um aflitivo sortido de banalidades - sobre a sociedade de consumo, etc - a revelação mais pertinente é de que Crumbs não teve sequer um guião, e que a história cresceu organicamente a partir de uma lista provisória de paisagens etíopes a que Llansó queria muito apontar uma câmara.

Esse acaba por ser o maior trunfo do filme. Há uma pequena mas marcante tradição literária e cinematográfica dedicada a explorar o mesmo tipo de imagens (chamemos-lhe a corrente Ballard/Tarkovsky): edifícios abandonados, maquinaria enferrujada, formações minerais sobre as quais água vai escorrendo, paisagens das quais a vontade humana se ausentou, e que a vegetação vai reclamando lentamente. Mas mesmo essa filiação prévia não desactiva todos os efeitos de estranheza que Crumbs produz: os planos iniciais de um deserto de sal - a cidade-fantasma de Dallol, no norte da Etiópia, local de uma antiga exploração de potássio - são das imagens mais convictamente alienígenas do cinema recente. A explicação para isto é sobretudo estatística, e deve muito ao afunilamento contemporâneo de possibilidades paisagísticas para representar aquilo que devia ser estranho. Numa altura em que alguns hectares de prados neozelandeses ou alguns cones vulcânicos islandeses são tão ou mais familiares para espectadores do que as ruas onde moram, filmar competentemente algo que nunca vimos é meio caminho andado.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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