Para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) conseguir absorver o recurso aos setores privado e social teria de garantir os exames feitos em laboratórios privados, reduzir os tempos de espera de consultas, de cirurgias, acabar com o modelo das unidades hospitalares geridas por parcerias público-privadas (PPP) e investir em profissionais e equipamentos. "No mínimo estamos a falar de cinco anos", aponta o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, Alexandre Lourenço..O tema vai a votos nesta terça-feira no Parlamento no âmbito da discussão sobre a nova Lei de Bases da Saúde. Dois dias depois de o maior parceiro da geringonça, o Bloco de Esquerda, vir defender que está disponível para voltar a discutir esta lei de bases, mas sem as PPP, já que esta matéria deve ter legislação própria..Só o fim das PPP representaria uma despesa de 425 milhões de euros (o valor previsto no Orçamento do Estado de 2019 para estas parcerias). Além disto, o SNS teria ainda de conseguir dar resposta a mais 20% das operações que assegura atualmente. Das 588 814 cirurgias realizadas em 2017, quase 114 mil foram feitas no privado ou no setor social, segundo o Relatório Anual do Acesso a Cuidados de Saúde de 2018. "Parece-me difícil que o SNS consiga de um momento para o outro absorver esse número de cirurgias", diz Alexandre Lourenço..Das operações que aconteceram nos hospitais privados, 24 608 foram realizadas ao abrigo de regimes convencionais, em que os pacientes receberam vales para as unidades hospitalares fora do SNS por já terem atingido 75% do tempo máximo de espera definido por lei para as suas cirurgias. "Este sistema é positivo", segundo o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, "e só faz sentido alterar se houver uma solução melhor, o que atualmente não existe"..Para estatizar é preciso investir.No entanto, o médico acredita na independência do SNS. Só não no imediato. "Qualquer tipo de resposta vai ter de integrar outras respostas no sistema. Era preciso alterar outras coisas para garantir a autossustentabilidade do SNS. No mínimo estamos a falar de cinco anos até isto ser possível.".Refere-se ao investimento nas instalações dos hospitais públicos e nos equipamentos utilizados, muitas vezes já absolutos ou mesmo avariados. No início de maio, o DN noticiava que os hospitais do SNS chegam a alugar aparelhos ao privado para colmatarem situações mais gravosas. Falta luz nos blocos operatórios, atualizações nos monitores de sinais de vida, aparelhos de TAC. Seria necessário um investimento na ordem dos mil milhões de euros nos próximos três anos para resolver os problemas relacionados com infraestruturas e equipamentos, de acordo como um levantamento feito pelo anterior Ministério da Saúde. Apesar disto, no mês passado, quando em Conselho de Ministros foi aprovada a verba para estes fins até 2021, o valor ficou-se apenas pelos 91 milhões de euros..Outra questão fundamental é a dos recursos humanos, que abandonam cada vez mais o SNS. Em quase todas as especialidades médicas ficam vagas por preencher nos concursos públicos. "Grande parte das limitações que existem atualmente no SNS passam pelas limitação de recursos humanos. Um dos casos mais preocupantes é o dos anestesistas. E esta é uma questão que não é ultrapassável sem rever os modelos dos quadros profissionais", refere Alexandre Lourenço..O presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, Óscar Gaspar, mostra-se mais relutante perante a perspetiva da estatização a 100%: "Parece-me muito difícil, para não dizer impossível. Não tenho conhecimento de que tenham sido feitos investimentos nos últimos anos - nem em equipamento, nem em infraestruturas, nem em pessoal - que permitam isto. O SNS tem aumentado em termos de produção de cirurgias e de consultas, mas apesar de tudo as necessidades dos portugueses têm aumentado mais ainda.".Partidos e a relação com os setores privado e social.O assunto continua a ser matéria de discórdia entre os partidos políticos. Se a direita defende a coexistência do público com o privado numa lógica de complementaridade, a esquerda nem sequer pode ouvir falar nessa ideia, especialmente no que diz respeito à gestão das entidades hospitalares. Ou nem sequer podia até este domingo, no caso do Bloco de Esquerda..O partido, que sempre recusou a intervenção dos setores não estatais em qualquer circunstância que não seja a incapacidade total do SNS de dar resposta aos cuidados de saúde, anunciou agora estar disponível para aprovar a nova Lei de Bases da Saúde sem as PPP, para que estas tenham uma lei própria.."A nova lei de bases deve ser aprovada. Para isso, é necessário remeter a definição do modelo de gestão das unidades do SNS para legislação futura", afirmou a líder do Bloco, Catarina Martins. Em troca impõe uma condição: os quatros hospitais que existem em regime de PPP atualmente têm de deixar de o ser no início da próxima legislatura. "A nova lei deve ainda revogar o regime jurídico que enquadra as PPP em vigor, aprovado pelo governo de Durão Barroso, garantindo a prazo o fim destas PPP.".Catarina Martins propõe mesmo que a Lei de Bases da Saúde seja aprovada sem as PPP, para que mais tarde a matéria seja analisada e enquadrada com legislação própria. O DN apurou que a proposta feita há dois dias pelo BE terá reduzidas possibilidades de ser aceite pela bancada socialista, uma vez que uma das matérias essenciais para o grupo parlamentar do PS é a "não proibição" das parcerias público-privadas, embora só as admita a título excecional..À semelhança da exigência inicial do BE, o PCP também quer o fim das parcerias público-privadas e tem inclusivamente uma proposta dedicada à transição de um sistema para o outro. "Enquanto o SNS não conseguir responder, pode contratualizar e pagar, por convenção ou acordo. Mas sempre com o propósito de o SNS ir aumentando a capacidade para que o recurso ao privado e ao social seja cada vez menor", dizia, na quinta-feira passada, a deputada do PCP que coordena o grupo de trabalho da nova Lei de Bases da Saúde, Carla Cruz, numa entrevista ao jornal Público..Já para o PSD, a saúde deve ser fiscalizada pelo Estado. No entanto, a gestão dos cuidados de saúde deve ser feita por quem estiver mais apto para beneficiar o sistema, de acordo com os sociais-democratas. No caso do CDS, o partido vai mais além e pede mesmo que o recurso ao privado não seja feito só em casos de inevitabilidade..A proposta do governo admite a continuação dos contratos com os setores privado e social, numa tentativa de encontrar o consenso necessário para aprovar a nova Lei de Bases da Saúde antes de a legislatura terminar, em outubro.