O sereno canto da Índia 

Premiado no Festival de Veneza e no LEFFEST, cai agora na Netflix. <em>O Discípulo</em>, de Chaitanya Tamhane, é um belíssimo filme a decantar a arte da desilusão.
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Quando damos por isso, estamos imersos no som da tambura, o instrumento de quatro cordas que enche a atmosfera. Esta sonoridade zen serve de tapete musical à raga, espécie de estrutura melódica da música clássica indiana que se abre à improvisação do intérprete. Queremos ouvir, entrar no estado mental sugerido, mas não podemos nem devemos fechar os olhos. O Discípulo, segunda longa-metragem do auspicioso realizador de Bombaim Chaitanya Tamhane (n.1987), é uma janela com vista eloquente, e anda por estes caminhos da tradição ancestral à boleia do seu protagonista, um jovem que começou por aprender as bases técnicas da música Khayal com o pai, em criança, e chegado à idade adulta dá seguimento à sua condição de aprendiz como discípulo de um velho guru, a quem dedica uma atenção filial.

Não é todos os dias que surge um filme indiano da estirpe de um Satyajit Ray, sem lhe prestar, contudo, nenhum tipo de vassalagem. Vem à memória O Salão de Música (1958), mas apenas porque O Discípulo partilha com este título de Ray um olhar sobre a cultura clássica indiana. De resto, Tamhane tem uma forma muito serena de conduzir o espectador na saga íntima desta personagem, alguém que aspira a algo maior do que o trajeto comum de qualquer ser humano, recusando a vulgaridade e a "vida arrumada" pelo díptico emprego/casamento. A sua busca pelo ascetismo na expressão de uma arte pura (a ideia de herança) tem uma quota pesada de realismo, e acaba por dar lugar a um depurado estudo sobre a desilusão que nos espreita.

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A Índia de O Discípulo é a Índia do choque entre a modernidade e a tradição (ora, também Ray foi um cronista das transformações, por vezes, subterrâneas desse país). Aí se alicerça um conto que vai ao âmago do sentido da aprendizagem, sem pretender dar lições. Tudo tem proporção humana. Até a música, essa que faz aceder aos sentimentos de quem canta, para além de moldar o corpo do filme, conferir-lhe densidade filosófica e libertar impurezas do lado de cá. É o cinema como meditação. Um retrato interior de Bombaim que ensaia o desencanto da vida sob efeito de um encantamento harmonioso.

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