O segredo de Belém - em doce

É mais bolos, mas não deixa  de ser um enigma, a merecer aliciamentos e operações secretas. A 15.ª mais saborosa iguaria do mundo, segundo  o jornal 'The Guardian', não  se faz por menos, conta o director-geral - dos pastéis.<br />
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Saem dezanove mil por dia, a 90 cêntimos. É fazer as contas. Toneladas de farinha, de margarina, de ovos, de leite… e de segredo.

"Há uma mística... O processo é quase de clausura, seguindo a tradição que vem da origem da receita, a do Mosteiro dos Jerónimos, que foi vendida ainda no século XIX aos donos de uma oficina de refinação de açúcar que existia aqui. Dentro da fábrica temos uma zona fechada onde só entram os mestres que conhecem o segredo e que é onde se faz o creme e a massa." Um deles é quem fala, Vítor Domingos, 50 anos, director-geral dos Pastéis de Belém e há 34 na empresa. Os outros são Henrique de Almeida, 85 anos, já reformado ("Mas que vem cá todos os dias, é uma pessoa muito respeitada e querida aqui"), Ramiro Rodrigues, de 54, e o "noviço" Carlos Martins, de 40. "

Domingos, que começou como empregado de copa, "a fazer torradas e a tirar cafés", aos 16 anos ("Foi nepotismo", comenta com humor, "O meu pai era chefe de cafetaria"), foi ficando e subindo até que um belo dia, tinha 30 anos e 14 de casa, o dono da empresa, Pedro Clarinha, lhe comunicou que ia ser introduzido ao "segredo". O que significa, assegura, "regalias sociais acima da média" (traduza-se: um bom ordenado e no seu caso até o direito a um apartamento sobre a fábrica) mas também "uma grande responsabilidade" e uma série de precauções contratualmente impostas. É que "o segredo está na cabeça de nós quatro e do dr. Pedro Clarinha. Por isso nunca viajamos juntos, nunca comemos a mesma comida no mesmo restaurante e nunca viajamos no mesmo carro".

Os escolhidos passam por um processo de avaliação informal ("Nunca usámos psicólogos nem nenhum especialista") que Vítor Domingos sintetiza em três pontos: "Têm de estar há muitos anos na empresa, têm de ter estabilidade emocional - entre um casado e um divorciado, por exemplo, escolhemos um casado - e não ter vícios, ser emocionalmente fortes. Não beber, não fumar, não ter vícios de jogo..." E, aparentemente, têm de ser homens, apesar de nos 160 empregados mais de metade serem do sexo feminino. O director-geral hesita: "É a tradição... E também é um trabalho exigente fisicamente. Não quer dizer que uma senhora não consiga fazê-lo ou que não se possa vir a mudar esta regra."

Sim, as coisas mudam. Até os sonhos. O homem que neste momento superintende a confecção da iguaria mais bem cotada de Portugal na lista que o The Guardian publicou recentemente e que com tanto orgulho e enlevo fala do célebre doce planeou outros voos. Primeiro, o de piloto-aviador e depois, com mais empenho, o de agente da Judiciária. "Ainda fiz os testes, aos 21 anos, depois de fazer a tropa. Mas não entrei. Também era um grande sonho do meu pai." O pai, claro, viria a compensar-se na ascensão do filho à categoria de detentor do segredo. E Vítor Domingos, cuja mulher é empresária e tem o filho mais velho de dois rapazes a cursar informática (o outro está no 11.º ano), acabou a fazer o contrário do que sonhara: em vez de desvendar enigmas e crimes, guarda segredos e resiste a aliciamentos e corrupções. "Temos uma obrigação moral. A mim nunca me fizeram grandes ofertas, mas a outros tentaram comprá-los com viagens ao Brasil e assim." Nada de muito tentador, então. Afinal, isto é mais bolos.

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