"O risco é real de que, por acidente ou desespero, sejamos arrastados para um conflito direto com a Rússia"
As rondas de negociações sucedem-se sem grandes desenvolvimentos, enquanto no terreno as forças russas vão intensificando os ataques. Arriscamo-nos a assistir a um conflito de longa duração na Ucrânia?
A Ucrânia já vive um conflito desde 2014, com graves impactos humanitários e políticos. Noutros países que fizeram parte da ex-União Soviética, como a Geórgia, a Moldávia e o Azerbaijão, há conflitos que permanecem sem acordo de paz há mais de 30 anos, em parte fruto de uma estratégia deliberada de destabilização levada a cabo pela Federação Russa, como forma de exercer controlo sobre as elites locais e as suas escolhas estratégicas. Estes exemplos fazem-nos crer que um cenário de conflitualidade prolongada poderá ser possível, tornando o caminho para a paz mais difícil. Quanto mais rapidamente nos empenharmos na obtenção de um cessar-fogo e de um acordo de paz que coloque um fim à violência, mais rapidamente podemos retomar o longo e difícil processo de construção da paz na Ucrânia, na Rússia e na Europa na sua globalidade. Esta deve ser uma prioridade absoluta de todos.
Como vê o papel da Bielorrússia nesta guerra? Por um lado, está ao lado de Putin, por outro é palco aceitável para as delegações ucranianas negociarem...
A autonomia das autoridades bielorrussas face a Moscovo é hoje, de facto, inexistente e muitos analistas falam de uma anexação gradual, que, contrariamente ao que vimos na Crimeia e no Leste da Ucrânia, em 2014, ou antes na Geórgia, em 2008, com o recurso ao uso da força, no caso da Bielorrússia se faz através de muitos e variados meios. A dependência do presidente Lukashenka em relação ao Kremlin tem-se acentuado significativamente desde 2020. O presidente bielorrusso depende de Moscovo para a sua sobrevivência política, incluindo através do uso de meios repressivos russos para silenciar a contestação interna. A economia bielorrussa é hoje controlada pela Rússia e o número elevado de forças russas neste país representa uma ameaça para os próprios bielorrussos e para a sua capacidade de decidir autonomamente a sua política. Face a este cenário, dificilmente podemos esperar que Minsk tenha uma política neste conflito que não seja definida em Moscovo.
Putin não tem escondido as suas ambições imperialistas. É de temer que depois da Ucrânia o presidente russo possa tentar alastrar o seu domínio a países como Geórgia (onde já controla Abcásia e Ossétia do Sul) e Moldávia (onde controla a Transnístria), até por não fazerem parte da UE nem da NATO?
O domínio de Moscovo sobre estes dois países tem-se feito sentir desde a década de 1990, principalmente através da manutenção de conflitos nas regiões separatistas. Ambos têm, contudo, resistido a outras formas de pressão e controlo. As reformas drásticas que a Geórgia adotou depois da Revolução das Rosas em 2003 tiveram o resultado de diminuir a dependência do país face à Federação Russa. No caso da Moldávia, uma política de gradual integração económica com a UE tem tido efeitos semelhantes. Politicamente, ambos os países têm escolhido sistematicamente forças pró-ocidentais, como forma de rejeição da submissão a Moscovo. A decisão russa de usar a força militar como recurso para impor o seu controlo sobre a Ucrânia cria, contudo, uma situação nova também para estes países. Para já, a Moldávia tem mantido uma política firme da neutralidade militar (inscrita na Constituição) e a Geórgia tem resistido à condenação da agressão russa, apesar da forte pressão interna. Até onde estas opções poderão manter ambos os países seguros, é muito difícil de antever, considerando a imprevisibilidade da ação russa. Mas caso Moscovo opte por uma ação militar, isso representará, de facto, o fim da Parceria Oriental da UE e um desafio à parceria da NATO com estes países.
Ficou surpreendida com a resistência ucraniana e com a liderança do presidente Zelensky?
A liderança do presidente Zelensky é uma surpresa para todos, especialmente se tivermos em conta que a sua imagem foi denegrida por muitos, devido ao facto de ele ser um comediante sem experiência política. Hoje, os que o caricaturaram têm de reconhecer que os líderes se fazem face às circunstâncias. Já relativamente à resistência ucraniana, a minha surpresa é menor. Tendo em conta a história deste povo, o facto de a sociedade ucraniana se encontrar altamente militarizada após oito anos de conflito no Leste do país e tendo em conta os níveis de ajuda militar de que beneficia, estavam reunidas as condições para uma resistência inicial forte. Mas estamos apenas no início da guerra. Se o conflito se arrastar e se Moscovo for capaz de cortar as linhas vitais que mantêm o esforço de guerra de Kiev, o cenário pode alterar-se.
Os ataques aproximam-se das fronteiras da NATO, surgem notícias (depois desmentidas) de pedidos da Rússia de ajuda à China, um cenário de III Guerra Mundial é assim tão descabido?
A gestão desta guerra está a revelar-se um dos mais complexos processos políticos do nosso tempo. Por um lado, o ato desesperado do presidente Putin de recorrer a uma guerra total para submeter um país soberano à sua vontade torna imprevisível o curso da sua ação, incluindo a possibilidade de utilização de armas nucleares. Por outro lado, é preciso entender que os países da UE e da NATO são parte deste conflito política e economicamente e, pelo menos do ponto de vista económico, esta já é uma guerra com impactos mundiais. Mas se tem sido possível manter os aliados contidos na sua ação militar e tem sido possível manter o conflito longe das fronteiras da NATO, o risco é real de que, por acidente ou por desespero e pressão da opinião pública, possamos ser arrastados para um conflito direto com a Rússia. A enorme responsabilidade que recai sobre os decisores europeus não deve ser julgada de forma leviana. E ela é tanto mais difícil quanto as imagens de destruição na Ucrânia se agravam. Esse é também o jogo do presidente Putin que sabe que, a médio prazo, as democracias podem cansar-se do apoio à Ucrânia e considerar o risco demasiado grande, cedendo em nome de um bem maior que seria precisamente o de evitar um confronto direto da NATO com Moscovo.
A União Europeia tem mostrado uma rara unidade neste conflito. Com o arrastar do conflito e a chegada de milhões de refugiados essa união irá durar?
O choque inicial desta guerra permitiu níveis de unidade que vão ter impactos muito duradoiros na política europeia de segurança e defesa. Contrariamente ao que gostaria, o presidente Putin terá de lidar com uma UE mais unida, que investirá mais na sua defesa militar e com uma relação mais próxima com a NATO. Em termos económicos e sociais, esta crise encontra uma Europa fragilizada, após dois anos de pandemia, mas que, contrariamente à crise financeira de 2008, reforçou a solidariedade, flexibilizou as regras orçamentais e garantiu liquidez nas economias europeias. Essas lições são muito importantes neste momento, porque nos mostram que essa solidariedade vai ter de continuar nesta nova crise para que as economias europeias resistam e consigam dar resposta às necessidades humanitárias que muitos países enfrentam hoje e enfrentarão no futuro imediato.
helena.r.tecedeiro@dn.pt