«Até há bem poucos anos o atum era um peixe pouco utilizado pelos profissionais de cozinha, com excepção de algumas regiões, como a Madeira, os Açores e o Algarve. Nesses locais, fazendo jus às tradições, existem algumas especialidades como os célebres bifes de atum em cebolada, a salada de estopeta, os bifes de atum com tomate do Algarve e da Madeira, alguns pratos tradicionais como o atum assado, atum de escabeche, atum salpresado ou atum de São João ou bifes de atum. No entanto, hoje em dia, com a cozinha contemporânea, são cada vez mais as novas receitas que os chefes de cozinha apresentam nas suas cartas de restaurante, em que os pratos tradicionais portugueses são apresentados com alguma inovação. Sem dúvida alguma que nos nossos dias o atum é um peixe nobre e nos últimos anos está a ser cada vez mais inserido na cadeia alimentar pela mão dos chefes de cozinha nacionais e estrangeiros», esclarece António Alexandre. O chef, que passou pelo Restaurante Fortaleza do Guincho (Cascais), Terreiro do Paço (Lisboa) ou Bica do Sapato (Lisboa), entre outros projectos, ressalta que nos nossos dias a pesca do atum é claramente insuficiente para o consumo nacional, muito devido à crise da frota pesqueira que assolou o país há alguns anos. O Algarve chegou a ter cem fábricas de conservas de atum (trinta em Vila Real de Santo António, sete em Tavira, quarenta em Olhão, trinta em Portimão e duas em Lagos), mas hoje as que estão activas contam-se pelos dedos de uma mão. Uma delas é a de Dâmaso do Nascimento, que, após o fecho da fábrica Comalpe, em 2003 (a última a encerrar na região), ficou desempregado (na altura era director de produção). Sem rumo, resolveu abrir, com a ajuda do Instituto do Emprego e Formação Profissional e da Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, a Conservas Dâmaso. «Quando comecei com este projecto estava convencido de que teria muito sucesso, uma vez que era, e continua a ser, a única fábrica do país que se dedicava à transformação do atum para secos e salgados. Todavia, os primeiros quatro anos foram de alguma dificuldade, mas agora já se vê luz ao fundo do túnel», confessa..Mais adeptosQuatro pessoas trabalham actualmente na fábrica, mas em alguns períodos há reforço de pessoal, principalmente no Verão. A diferença entre a fábrica de Dâmaso do Nascimento e aquelas que fizeram o passado conserveiro de toda a região do Algarve é que as tradicionais latas foram substituídas por produtos salgados e embalados em invólucros transparentes («como diz o povo, os olhos comem primeiro do que a boca. A embalagem é sem dúvida uma preocupação, já que reflecte a boa comercialização do material»), produtos que são requisitados em diversas casas gourmet um pouco por todo o país, que pretendem ter nas suas prateleiras muxama (lombos de atum salgados e secos), chouriço e ova de atum, estopeta (tiras salgadas sujeitas a lavagem na altura do consumo), tarantelo (faixa longitudinal acima da barriga) ou salame de atum.«Esta empresa é recente, estamos no quinto ano de laboração. Felizmente que as vendas estão a subir todos os anos e facturamos cerca de trezentos mil euros/ano.»O sucesso de Dâmaso do Nascimento não surpreende o chef António Alexandre, que ressalva que «o atum fresco está a ganhar cada vez mais adeptos, baseando-se nas receitas tradicionais portuguesas e nas novas tendências das cozinhas japonesa e coreana». Segundo o cozinheiro, «há cada vez mais e melhores receitas com o atum fresco na restauração e hotelaria», como comprovou o próprio chef na recente Feira Nacional de Parques Naturais e Ambiente, em Olhão. Os figos grelhados de Castro Marim com muxama de atum de Vila Real de Santo António [ver caixa] foram a estrela do evento, demonstrando a enorme procura deste peixe. E foi precisamente em Olhão que esteve localizada grande parte da frota pesqueira nacional. O presidente da câmara, Francisco Leal, refere que a sua autarquia procura ajudar ao máximo o renascimento desta tradição na região, principalmente porque o atum é um peixe muito valorizado no estrangeiro. «No Japão chega a custar entre 150 e 200 euros o quilo. Por isso procuramos incentivar a nossa indústria dentro das nossas possibilidades, criando condições para a sua implantação.» Profundo conhecedor das raízes gastronómicas nacionais, António Alexandre recorda a tradição da pesca de atum no Algarve: «A pesca do atum, que ainda se pratica no Algarve, Madeira e Açores, é claramente insuficiente para o consumo nacional, ainda mais porque estamos a falar de uma espécie que está à beira da extinção. Há meio século chegaram a conviver em Vila Real de Santo António mais de trinta fábricas de conserva de atum, que passa na costa do Algarve, a caminho da desova no Mediterrâneo. Hoje não há praticamente atum, muito menos uma frota pesqueira para o capturar. Em 2002 a Comissão Internacional para a Conservação do Atum Atlântico (ICCAT), que estipula regras para a pesca do atum-azul, estabeleceu um máximo de 32 mil toneladas anuais de capturas no Atlântico e no Mediterrâneo. Em Novembro de 2006, o ICCAT, numa tentativa de evitar a pesca em excesso, reduziu ainda mais esse limite e até 2010 só será permitido pescar 25 500 toneladas. Depois do fim das capturas nacionais em jaulas e do fim da frota de pesca há três décadas, as capturas ao largo do Algarve estão por conta exclusiva de uma “jaula” que se encontra no oceano, junto à ria Formosa, explorada por uma empresa japonesa, a Tunipex, que recolhe o atum que regressa do Mediterrâneo depois da desova e se encarrega de o engordar, durante quatro a cinco meses. Procedem depois à captura individual dos espécimes e ao seu envio para o Japão, por via aérea, conservados com meios tecnologicamente avançados. Graças a esses meios, os exemplares são vendidos nos mercados japoneses como peixe fresco. Ao contrário dos portugueses, os espanhóis têm vindo a aumentar as capturas por todo o Mediterrâneo, chegando a rebocar as próprias armações durante trinta dias até Múrcia.»E é precisamente de Espanha que Dâmaso do Nascimento importa o seu atum, mais concretamente de Vigo, na Galiza: «A espécie capturada pelos galegos é bem diferente da espécie algarvia, Thunnus thynnus, também chamado atum-azul, que pode chegar aos quinhentos quilos. Importo o Neothunnus albacora, que não ultrapassa os 170 quilos e tem um peso médio entre noventa e cem quilos.» O empresário revela que a estrutura produtiva da fábrica é feita totalmente por processos manuais, que diariamente desmancham (o chamado ronquear) literalmente entre dez e 12 atuns. Dâmaso do Nascimento admite que a sua empresa poderia estar noutro patamar, reconhecendo que falta ao seu negócio um departamento fulcral nos negócios de hoje:«Esta empresa é pequena, por isso não temos um departamento comercial que literalmente ataque nas zonas gourmet. No entanto, felizmente, os produtos têm tido saída e as lojas acabam por procurar-nos. Neste momento forneço a cerca de vinte lojas em todo o país. A publicidade boca a boca é mais lenta e menos vasta, mas é a mais credível.».Museu e capelaO Algarve acolhe com orgulho a fábrica de Dâmaso Nascimento, ainda mais por ser um homem do atum, um peixe que faz parte da própria história da região, uma história que teve momentos de euforia e desolação, principalmente quando a indústria pesqueira foi praticamente desactivada na década de 1970, com milhares de famílias a serem desalojadas na região de Tavira. Esses momentos das gentes algarvias podem ser melhor entendidos no Museu da Pesca do Atum, em Tavira, localizado no interior do Hotel Vila Galé Albacora, a funcionar desde o ano 2000 no antigo Arraial Ferreira Neto (estrutura de apoio às armações de pesca, nomeadamente do atum, localizada nas Quatro Águas. É o único arraial existente e foi classificado como Imóvel de Interesse Público). «O projecto do hotel sempre teve em conta as memórias deste local», salienta o director, Bruno Martins, que também faz questão de mencionar a presença no seu espaço hoteleiro da Capela Nossa Senhora do Carmo do Arraial Ferreira Neto, «um local onde se faziam as missas para desejar boa fortuna aos pescadores. De 15 em 15 dias realizamos missas abertas à população de cá».Estes dois locais, o museu e a capela, fazem parte das recordações de um povo e de uma região que sempre valorizaram o atum nas suas vidas e que nunca o esqueceram nos seus pratos. No entanto, muito devido a Dâmaso do Nascimento, o peixe está a ser redescoberto por uma camada da população mais «requintada»…«O atum é um peixe muito versátil do ponto de vista gastronómico. Adequando à sua textura uma diversidade de técnicas e confecções, poderemos apresentar o atum em vários produtos e subprodutos», refere o chef António Alexandre, que admite que o atum tem a capacidade de o levar a viajar pelos produtos algarvios, «como a batata-doce de Aljezur, a manteiga de amendoim de António Rosa, cebola, poejos e alho biológicos de João Pedro Gama, os excelentes figos de Jacinto Palma Dias, de Castro Marim, a muxama de atum de Dâmaso do Nascimento e ainda o excelente azeite de Moncarapacho de Detlef von Rosen…» No fundo, um peixe que carrega nas suas guelras um mundo de recordações..Tourada do marNa obra Os Pescadores (1923), Raul Brandão (1867-1930) escreveu com mestria a captura do atum, o diálogo titânico entre o pescador e o peixe, um diálogo que também era conhecido por «tourada do mar».«Uns homens têm na mão direita a ganchorra curta e afiada, presa ao pulso pela alça, e outros, armados de um bicheiro mais comprido, só esperam que o atum comece a saltar para o chegarem aos barcos. Agita-se a água... Vêem-se os grande dorsos reluzentes e os rabos que chapinham... Espetam o peixe. Para não caírem à água, deitam a mão esquerda à corda amarrada ao pau de entrevela, curvam-se e fisgam-nos pela cabeça. O peixe resiste e quer fugir: sentindo-se preso, ergue-se, apoiado na cauda, e é esse movimento de recuo que ajuda o homem a metê-lo para dentro da caverna, largando logo da mão o bicheiro, que lhe fica suspenso do pulso pela alça. Baixa-se o homem, ergue-se logo... Os barcos estão cheios de peles luzidias e de manchas gordurosas de sangue. São bichos enormes e escorregadios, de grossa pele azulada, que batem pancadas sobre pancadas com o rabo. A gritaria aumenta – Eh! Eh!... É uma mixórdia que me cansa. Só vejo manchas sobre manchas, sobrepostas, a cor e o movimento, a cor dos homens, a cor dos grandes peixes que se debatem e morrem e a agitação que se precipita e acelera os gestos confundidos. E sobre tudo isto um grito, um grito de triunfo, o grito de matança que explode numa alegria feroz, a alegria primitiva: – Eh! Eh!... num quadro imutável, todo vermelho e negro.... Cheira a açougue. A água tinge-se de sangue, a água pegajosa encharca os barcos. Misturam-se as cores e as peles escorregadias.... A carnificina enfarta e enjoa... há laivos, nódoas de sangue na tinta azul do mar.... Imensa tela a tons violentos, com uma agitação frenética no primeiro plano.»