Não sei se António Costa tenciona fazer a remodelação profunda do Governo que muita gente - incluindo eu -- tem andado a sugerir como requisito essencial para repor o elan governativo que parece, nesta altura, seriamente comprometido. Tão pouco sei, concordando o Primeiro-ministro com isso, quando é que o tenciona fazer (daqui a meses, daqui a um ano, depois das europeias, perto do final da legislatura...)..O que sei é que se António Costa estiver de facto a pensar fazê-lo, ontem deu aquilo que pode ser um passo vital para que isso tenha sucesso..Uma das peculiaridades do contexto político atual é a manifesta dificuldade em recrutar titulares governativos fora de um restrito universo subjetivo. A base de recrutamento parece ter-se tornado dramaticamente exígua ao longo do último ano. Muitos fatores concorrem para isso. Refiro dois decisivos: poucos terão vontade em abandonar carreiras profissionais para integrar um Governo desgastado; poucos terão disponibilidade para incorporar um Governo em que, aparentemente, o Primeiro-Ministro não consegue "aguentar" os seus Ministros, quer face à opinião pública, quer face ao Presidente da República. Com a decisão de 2 de maio, que será uma das que constarão dos manuais de História política contemporânea, António Costa enviou uma mensagem simples: sou eu que mando, sou eu que decido, solitariamente, contra tudo e contra todos. A mensagem tem três destinatários: o interior do Governo, a opinião pública (que tende a reagir positivamente a manifestações de autoridade em situações difusas, quando bem sustentadas) e o Presidente da República..CitaçãocitacaoAntónio Costa enviou uma mensagem simples: sou eu que mando, sou eu que decido, solitariamente, contra tudo e contra todos. .É quanto a este último destinatário que o pronunciamento se mostra mais arriscado. Na verdade, o que o Primeiro-Ministro faz é recentrar o funcionamento do sistema de Governo, reposicionando o lugar do Presidente da República. Até abril do ano passado, António Costa não tinha maioria parlamentar. A sua dependência do sustento do Presidente da República era a que é costumeira em sistema semipresidencial quando o Governo não dispõe de maioria parlamentar. Essa situação alterou-se em abril de 2022, mas, seja por entendimento tácito ou por conservadorismo dos protagonistas, todo o primeiro ano do Governo de maioria absoluta se processou como se não tivesse havido alteração das circunstâncias políticas e o Presidente da República mantivesse a sua margem de manobra incólume..O Primeiro-Ministro vem simplesmente fazer uma coisa: anunciar que, a partir de agora, o sistema de governo passa a funcionar nos moldes típicos de funcionamento quando existe uma maioria parlamentar: os moldes do sistema semipresidencial de matriz primo-ministerial. O que significa isto: reduzida margem de intervenção do Presidente; é o Primeiro-Ministro que é o imperturbado Chefe do Executivo, é ele que decide quem são os ministros, é ele que é responsável, sem partilha. Não é bluff. Está no código genético de António Costa. Acabou o sistema de dois primeiros-ministros que vimos funcionar em algumas alturas críticas do passado recente, particularmente durante a pandemia..É claro que se trata de uma jogada de alto risco. O Presidente pode dissolver a Assembleia da República praticamente sem qualquer constrangimento jurídico. Basta a sua vontade e o cumprimento de alguns formalismos. Todavia, a ausência de constrangimentos jurídicos não significa que não haja fortes constrangimentos políticos. E neste momento há um que só não é forte porque é fortíssimo: o Presidente sabe que uma dissolução ou dá um frágil Governo do PS, com maioria relativa, ou dá um Governo do PSD com o Chega lá dentro ou a fazer chantagem diária na AR. Admito que o Professor Marcelo Rebelo de Sousa não quererá que a sua legenda futura como Chefe de Estado o descreva como aquele que encaminhou o Chega para a orla do poder, ou que criou condições para a belgificação do sistema. Porventura, António Costa faz o mesmo cálculo..Sendo assim, aparentando dar um passo na direção do abismo, é possível que a afirmação da autoridade, com cara de confrontação, efetuada pelo Primeiro-Ministro, seja afinal o que lhe permite tranquilizar internamente a sua equipa e, quiçá, começar a pensar em robustecer a solução governativa. O futuro o dirá..Sá Carneiro e Mário Soares compreenderiam a opção de António Costa. Quase sempre venceram. Mas nem sempre.. Presidente da associação sem fins lucrativos Fórum de Integração Brasil Europa - FIBE, doutor em Direito e especialista em Direito Constitucional.