Em outubro de 2019, no meio de uma crise económica, os libaneses saíram à rua em protesto contra a elite política que acusavam de ser incompetente e corrupta. O então primeiro-ministro, Saad Hariri, filho do ex-chefe de governo Rafic Hariri (assassinado em 2005), foi o principal alvo dos manifestantes, acabando por se demitir. Mas agora, com uma crise também social e política, acentuada pela pandemia e pela explosão no porto de Beirute em agosto, Hariri está de volta..O presidente libanês, Michel Aoun, convidou o empresário de 50 anos - que já liderou três executivos no passado - a formar novamente governo, depois de Hariri ter conseguido apoios suficientes no Parlamento (65 dos 128 deputados, com 53 abstenções). O líder do Movimento do Futuro teve o voto positivo dos membros do bloco ao qual pertence o seu partido, assim como da formação do líder druso Walid Jumblatt e o do partido xiita Amal, liderado por Nabih Berri, o presidente do Parlamento. Os seus aliados do Hezbollah, movimento xiita com ligações ao Irão e considerado terrorista no Ocidente, absteve-se..Hariri prometeu formar um "governo de peritos" para realizar as reformas defendidas pela iniciativa do presidente francês, Emmanuel Macron, e ajudar a tirar o país da crise. Prometeu ainda, num breve discurso transmitido pela televisão, "formar um governo rapidamente", considerando que "o tempo urge e o país enfrenta a sua última oportunidade". Os membros do executivo não pertencerão a partidos políticos, tendo como missão realizar "reformas económicas, financeiras e administrativas", referiu..Mas até os membros do governo tecnocrata serão escolhidos com base no que os partidos disserem e, segundo alguns media, Hariri já terá prometido que o ministro das Finanças será escolhido entre os nomes sugeridos pelo Hezbollah e pelos xiitas.."Se o interesse do país exigir um acordo com toda a gente, então o interesse do país deve vir primeiro", disse Hariri, alegando que a "positividade" que demonstrou nesta quinta-feira é "apenas o início". E deixou uma mensagem aos que sofrem com a crise: "Digo aos libaneses que estão a sofrer até ao ponto de desespero que estou determinado a manter a minha promessa.".Depois da demissão de Hariri, a 29 de outubro de 2019, foram precisos dois meses para que o presidente designasse o independente Hassan Diab para o cargo de primeiro-ministro - com o apoio do Hezbollah e dos aliados, que controlam o Parlamento..Ao abrigo do acordo de partilha de poder que existe desde a independência, em 1943, o presidente do Líbano é sempre um católico maronita. O primeiro-ministro tem de ser um muçulmano sunita e o líder do Parlamento é um muçulmano xiita, sendo certo que nesta câmara metade dos representantes são cristãos e a outra metade muçulmanos (segundo os acordos de Taif após a guerra civil em 1990)..Os cargos de vice-primeiro-ministro e de número dois do Parlamento são entregues a cristãos ortodoxos gregos, enquanto o chefe do Estado Maior das Forças Armadas tem de ser um druso. Ao todo, as 18 comunidades religiosas reconhecidas no país têm direito a determinados cargos, o que facilita o clientelismo..Diab conseguiu formar governo já em janeiro deste ano, mas a situação económica continuou a deteriorar-se e, pela primeira vez, o país declarou o default, anunciando que não tinha capacidade para pagar as dívidas externas. A pandemia de covid-19 veio piorar ainda mais a situação, revelando as falhas e a desigualdade dentro do sistema de segurança social libanês..A gota de água chegou em agosto. O Líbano ficou em choque com a explosão de dia 4 no porto de Beirute, que fez mais de 200 mortos e seis mil feridos, deixando milhões de dólares de prejuízo e milhares de desalojados. Seis dias depois, Diab demitiu-se, cedendo à pressão dos manifestantes e dos que apontaram o dedo à negligência do governo, que deixou durante anos o material explosivo (2750 toneladas de nitrato de amónio) no porto de Beirute..Comparável a Hiroxima. Funcionários do porto de Beirute em prisão domiciliária.A 31 de agosto, o então embaixador do Líbano na Alemanha, Mustapha Adib, foi nomeado para lhe suceder, conseguindo o apoio de 90 deputados. Mas quase um mês depois acabaria por renunciar, incapaz de formar governo, num revés para a iniciativa de Macron, que exige reformas profundas contra a corrupção antes de entregar a Beirute milhões de dólares de ajuda internacional..Desde a demissão de Adib que o nome de Hariri voltou a ser falado, com o próprio a admitir no dia 9 de outubro que era candidato - e a fazer uma espécie de mea culpa: "As pessoas dizem que os partidos são responsáveis, eu incluído. Sim, nós somos responsáveis.".Mas o caminho para a formação de governo não é fácil - o próprio Hariri demorou oito meses para o conseguir, depois das parlamentares de 2018, naquele que já era o seu terceiro mandato..O empresário de 50 anos entrou para a política depois da morte do pai, Rafic Hariri, num atentado à bomba em fevereiro de 2005. O ex-primeiro-ministro, que tinha estado no cargo de 1992 a 1998 e depois de 2000 a 2004, era popular por causa do seu papel na construção do Líbano pós-guerra civil..Saad vivia na Arábia Saudita (onde nasceu) e estava à frente dos negócios da família, a construtora Oger, fundada em 1978 (que foi dissolvida em 2017). Mas o assassínio do pai, e a acusação de que a Síria seria a responsável (investigações posteriores apontam o dedo ao Hezbollah), levaram-no de volta ao Líbano, sendo um dos rostos da Revolução dos Cedros, que se seguiu. Os libaneses saíram então às ruas para exigir o fim da presença das tropas sírias no país (que durava há quase três décadas e aconteceria a 27 de abril) e da influência de Damasco na política de Beirute..Hariri assumiu a liderança do Movimento pelo Futuro e, em novembro de 2009, foi eleito primeiro-ministro pela primeira vez, com a aliança 14 de Março (à qual pertencia) a conquistar a maioria, ganhando à Aliança 8 de Março, liderada pelo Hezbollah. Ambos formaram um governo de coligação, que caiu em 2011 quando os 11 ministros da formação xiita se demitiram, por causa da investigação à morte de Rafic Hariri..O governo de Saad acabaria também por cair e ele esteve num autoexílio na Arábia Saudita (onde vive a sua mulher, de origem síria, e os três filhos) e em França, antes de regressar, em dezembro de 2016, quando o novo presidente libanês, Michel Aoun (eleito após um hiato de dois anos), o chamou para formar governo, novamente em coligação com o Hezbollah..Depois veio o episódio mais rocambolesco. Em novembro de 2017, quando estava na Arábia Saudita (aliado tradicional), demitiu-se do cargo de primeiro-ministro, acusando o Hezbollah - que tem o apoio do Irão e que ele acusa da morte do pai - de desestabilizar a região. Alegou que a situação no Líbano era igual à que existia na altura do atentado contra o pai e dizia sentir a vida em risco..Os libaneses acusaram os sauditas de o manterem como refém, tendo sido a intervenção de Macron e da França a desbloquear a situação. Hariri regressaria à chefia do governo. Nas eleições de 2018, as primeiras no Líbano desde as de 2009, o Movimento pelo Futuro perdeu, contudo, um terço dos lugares no Parlamento, com os xiitas a ganhar mais peso. Precisou então de mais de oito meses para conseguir formar novamente governo, até à demissão, no ano passado..Minado pela corrupção e pelo Hezbollah, Líbano sofre tempestade perfeita.Se para os vários grupos políticos Hariri era o único sunita com capacidade de liderar o governo nesta altura, para os manifestantes que saíram às ruas há um ano ele é tudo aquilo que não queriam.."O regresso de Hariri é o pico da contrarrevolução", disse o ativista política Nizar Hassan à Al Jazeera. "Um pilar da ordem política instalada, um multimilionário que representa os bancos e os interesses estrangeiros, e um símbolo da ineficácia governamental e da corrupção generalizada. Ele representa tudo aquilo contra o qual nos revoltámos", acrescentou..E o facto de não ter havido protestos nas ruas preocupa-o. "Obviamente isso não significa que o povo apoia o seu regresso, mas apenas que não há momentum revolucionário", explicou..Uma única manifestação ocorreu na quarta-feira à noite, mas foi rapidamente suplantada por apoiantes do primeiro-ministro, que queimaram mesmo uma imagem gigante de um punho, símbolo da revolta de há um ano. Um novo punho foi erguido novamente nesta quinta-feira.