"O que sinto pelos Bolsonaro é preguiça"
Intrigas, ciúme, guerra digital, desvio de verba da Covid-19, xingamentos, rachadinha, enfrentamento às Forças Armadas. Segundo o senador mais votado do Brasil, o presidente Jair Bolsonaro e seus filhos fizeram o governo da maior economia da América Latina parecer uma ORCRIM - Organização Criminosa.
Eram 8h da manhã na esplanada de um café com vista para a Serra da Cantareira, região norte da cidade de São Paulo e reduto eleitoral do senador Major Olímpio. Uma leve lufada de ar de um verão que ainda não mostrou a que veio, sinalizava que aquele dia seria quente. Mas quente mesmo foi a conversa que tive com o senador mais votado do Brasil. Com passos rápidos, gestos firmes, vejo Olímpio a se aproximar. Usava uma máscara com a bandeira do Brasil estampada e uma frase de apoio à Operação Lava Jato - que praticamente não existe mais. Despiu-se da máscara a sorrir, deu-me um forte aperto de mãos e sentou-se à minha frente. Eu mantive a máscara. "Um café?", perguntou enquanto a garçonete aproximou-se, fizemos nossos pedidos e de seguida começaria um diálogo que fora solicitado por mim, para que eu pudesse perceber o que se passa na cabeça do presidente do Brasil. Ao final do depoimento cronológico que divido com você, saí com a certeza de que ninguém tem essa resposta.
Eleito senador em 2018 com mais de 9 milhões de votos para representar o estado de São Paulo em um mandato de oito anos, Major Olímpio é um experiente político que não mede palavras. Aliado de primeira hora do presidente Jair Bolsonaro, o senador campeão de votos no país tornou-se um dos maiores desafetos da família do presidente que conta com três filhos em cargos eletivos: o senador Flávio Bolsonaro - eleito com menos da metade dos votos de Olímpio -, Carlos Bolsonaro, vereador pela cidade do Rio de Janeiro e Eduardo Bolsonaro, deputado federal por São Paulo.
Flávio é um autêntico fio desencapado a curto-circuitar por onde passa. Mas encostou em Olímpio que, por não ter medo de choque, o enfrentou e passou a ser considerado traidor pelos filhos do presidente e seus seguidores. O senador Mj Olímpio é pré-candidato à presidência do Senado - eleição que ocorrerá no início de 2021 - e projeta sua candidatura ao governo do estado de São Paulo em 2022.
Já na primeira chávena de café vou direto ao ponto: qual a sua relação com a família Bolsonaro? "A família se refere a mim como traíra", diz. Já Olímpio os define como "ORCRIM - Organização Criminosa". Imagino quão afável deva ser esse relacionamento. O senador afirma que o fato de não ser omisso em relação aos erros que gravitam ao redor dos Bolsonaro deu origem ao atrito. "Para eles, ou você aceita o que fazem sem se manifestar, sem contestar, ou é um traidor."
Olímpio era deputado federal, assim como Jair Bolsonaro. Ambos faziam parte do chamado "baixo clero" - grupo de parlamentares de pouca expressão nas decisões da câmara dos deputados. "Fui para o Partido Social Liberal (PSL) a convite de Jair Bolsonaro quando ficou acertado que ele seria candidato. Éramos ele, eu e mais cinco deputados, entre eles seu filho Flávio. Nosso tempo de tevê contava com risíveis sete segundos. Eu poderia tentar a reeleição a deputado federal, era mais seguro, mas abri mão e apostei no projeto de sua candidatura. Eu dizia a meus eleitores: esse sujeito é "o cara"."
Assim ele se tornaria um dos principais cabos eleitorais de Bolsonaro em São Paulo e coordenador da campanha à presidência naquele estado. Me faz impressão o fato de serem tão próximos e Olímpio não captar a energia que movia aquele grupo familiar. Durante a votação nominal na câmara dos deputados pelo impeachment de Dilma Rousseff, ocorrida em 2016, o então deputado Jair Bolsonaro proferiu seu voto desta maneira: "Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim". Convenhamos, é pouco provável que um cidadão que defina como herói nacional ao primeiro coronel do Exército Brasileiro condenado por torturas cometidas quando esteve à frente de um dos mais atuantes órgãos de repressão política na ditadura militar, possa ser levado a sério. "Parece incrível. Mesmo sabendo que ele era uma pessoa despreparada intelectualmente, um homem intransigente, homofóbico e misógino, acreditei que se renderia a um projeto maior do que suas próprias limitações. Eu me enganei. A sabedoria tem limites, a burrice não."
Por falar em homofobia, Jair Bolsonaro usou o que ele chamava de "kit gay" (material didático "para professores", baseado em diretrizes criadas pelo Ministério da Educação, apoiadas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO, que visava o combate à homofobia nas escolas), como uma das bandeiras de campanha. Esbraveja a dizer que se tratava de um projeto da esquerda para destruir a mente das crianças e, consequentemente, o modelo de família cristã. Em entrevista à Rede Globo, mostrou um livro que supostamente faria parte do programa e seria distribuído às crianças. Foi desmentido e obrigado a tirar as postagens sobre esse tema de suas redes sociais. O livro sequer fazia parte do projeto. Entretanto seus seguidores acreditam nisso até hoje. Eles acreditam em tudo, porque são iguais. Era um claro ato contra a diversidade de género num discurso sempre raivoso, acima do tom. Perguntei ao senador o que havia por trás desse comportamento estridente quando o tema é género ou qualquer coisa desse universo. "Negação", disse Olímpio, que alega hoje entender melhor o trauma, embora discorde e nunca o tenha apoiado. "Há casos no seio da família Bolsonaro, daí a postura de negação. Já é difícil para qualquer ser humano ter de impor a sua orientação sexual num mundo machista como o que vivemos, imagine para alguém que tenha como pai Jair Bolsonaro."
O senhor está a sugerir que um dos filhos do presidente seja homossexual?"Sim. Talvez mais de um. Mas isso não é nenhum problema. Ninguém tem nada a ver com isso. Só estou a citar porque o fato explica a postura deles diante dessa pauta."
O senador alega ter dúvidas se o próprio Bolsonaro não teria sido violentado quando criança, por ser esse um tema recorrente para ele. "No trato do dia-a-dia a "brincadeira" dele é: "veado, vou-te comer!", coisas desse nível rasteiro. Quem o rodeia ri, os demais se constrangem. É uma coisa que carece de avaliação psiquiátrica, não é normal. Ele precisa de ajuda, a família toda precisa. Nesse ponto tenho pena deles, devem sofrer muito por isso. Cada um dá aquilo que tem de melhor e as pessoas têm de aceitar. Coitados."
Olímpio explica que antes das eleições eles interagiam, eram "amigos" na câmara dos deputados. Mas desconhece o que acontecia da porta do gabinete de seu vizinho para dentro. "Aquilo é um mundo dinâmico. Você não sabe se há funcionário fantasma, se acontece "rachadinha", nem está ali para isso." - Rachadinha, segundo a Wikipédia, é a prática caracterizada pela transferência de salários de assessores para o parlamentar a partir de um acordo preestabelecido ou como exigência para a função. A prática também pode ser caracterizada quando o agente se utiliza de "funcionários fantasmas". Nesta hipótese, uma pessoa é nomeada para exercer um cargo público sem, contudo, desempenhar as atribuições que lhe cabem, em algumas situações essa pessoa nem sequer existe, assim a remuneração referente ao cargo ocupado pelo funcionário fantasma é desviada em proveito do agente nomeante.
Mesmo Olímpio a ser uma peça importante que levaria apoio aos projetos do governo no senado federal, Bolsonaro romperia com ele. "Ele nunca me considerou uma peça tão importante assim. Tínhamos alguns ruídos já há algum tempo. Um deles ocorreu na segunda volta das eleições (de 2018), quando ele passaria a apoiar João Doria - PSDB (prefeito licenciado de São Paulo), na disputa pelo governo do estado. Eu disse a ele: "sou policial de São Paulo, fiz minha carreira política lá, eu conheço esse cidadão, pelo amor de Deus, ele está a enganá-lo, ele é uma farsa". Olímpio já havia sido eleito senador na primeira volta e apoiava o outro candidato na disputa pelo governo abertamente.
O coordenador da campanha de Bolsonaro à presidência, Gustavo Bebianno, ligou no telemóvel de Olímpio mas quem fala é Bolsonaro: "você está tranquilo porque já ganhou a eleição. Eu ainda não. Agora está a me atrapalhar a pedir votos para esse Márcio França (Partido Socialista Brasileiro - PSB), ele é comunista!" Olímpio disse: "meu Deus do céu, olha bem quem é João Doria. Você não vai ter um voto a mais por estar com ele. Ele é quem está a explorar o seu nome. Naquela altura Bolsonaro ficou muito bravo comigo. Hoje ele diz que seu maior inimigo é João Doria. Eu já sabia".
Bolsonaro se negou a ir aos debates por saber que seria esmagado. Isso virou estratégia. Até que uma facada definiria o rumo da eleição presidencial. Uma dinâmica estranha e mal explicada até hoje envolve esse atentado, com dúvidas levantadas pelo Procurador Geral da República que solicitou aprofundamento nas investigações. Ninguém fala mais nisso. De seguida ao atentado, Bolsonaro disparou nas intenções de votos, claro. Virou um mártir. Pergunto se houve a facada e Olímpio responde um sim categórico. "Eu vi o abdómen dele com um estrago sem tamanho. Entrei várias vezes na UTI do (hospital Albert) Einstein. Estávamos realmente preocupados com sua sobrevivência."
Ao final das eleições, Olímpio se tornou o senador mais votado do Brasil. Logo no início do mandato disputou a presidência do senado. Na presidência, seria um dos homens mais poderosos da Nação. O senhor acreditou que sua votação o "cacifava" para alcançar a presidência?"Aquilo foi uma candidatura contra o sistema. Havia um movimento nacional anti Renan Calheiros (senador alagoano que se tornou réu por peculato, afastado da presidência do senado e reconduzido pelo Supremo Tribunal Federal - STF, mas impedido de assumir a Presidência da República na linha sucessória em caso de afastamento do presidente e do vice), era contra tudo o que ele representava. Nunca ninguém assistiu a uma eleição de presidente do senado. Aquela foi assistida como a um jogo da equipa nacional. O filho de Bolsonaro e o Onyx Lorenzoni - ministro nomeado pelo ex-presidente Michel Temer para auxiliar na transição do governo, que se tornou ministro da Casa Civil no governo Bolsonaro -, saíram a distribuir cargos e verbas a pedir votos. Prática que Bolsonaro chamava de "velha política" que teria de lutar e derrubá-la após eleito, contra a qual montaria um Cerco de Jericó. Mentiu. Estava a agir como condenara."
Em apoio a qual candidatura? "Davi Alcolumbre. O Onyx foi à casa da senadora Simone Tebet, minha amiga do MDB. Ela disse: "major, Onyx me fez uma proposta indecente". Era ordem do Bolsonaro apoiar Alcolumbre. Hoje ele disfarça e nega. No dia da eleição Bolsonaro ligou a todos os candidatos a desejar boa sorte, não ligou para mim, candidato de seu partido. Foi uma resposta aos desentendimentos anteriores sobre o caso João Doria. Ele não aceita ser contrariado. Mais adiante, a CPI Lava Toga azedaria de vez a nossa relação."
Outra bandeira de campanha de Jair Bolsonaro foram os ataques frequentes ao STF. Seus seguidores iam ao delírio. Isso se refletiu na fala de sua equipa como o ex-ministro da Educação que saiu fugido do Brasil a temer ser preso por ataques ao STF em reunião divulgada onde diz que: "Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF". Bolsonaro ganhou votos com esse discurso beligerante, seus filhos atiravam contra o STF o tempo todo. Poucas semanas antes do segundo turno, o já eleito deputado Eduardo Bolsonaro disse que para "fechar o STF não era preciso mandar nem mesmo um Jipe, bastava um soldado e um cabo. Sem desmerecer o soldado e o cabo". Os seguidores, saudosos da ditadura, tinham reações orgásmicas nas redes sociais. Especialmente com postagens e fake news criadas pela equipe ligada ao comando de sua campanha.
O objetivo da investigação "Lava Toga" era responsabilizar juízes, em especial os do STF, suspeitos de crimes e irregularidades que poderiam levá-los ao afastamento de seus cargos. O Senado é o único órgão que pode pedir o impeachment de integrantes do STF. Entretanto, cabe ao presidente do senado, e não ao plenário daquela casa, definir se abre ou não a investigação. Caso Olímpio chegasse à presidência do senado, ele lutaria pela investigação.
Pergunto ao senador o que houve para Bolsonaro mudar de ideia e não querer a CPI Lava Toga após assumir. "Bolsonaro me chamou em seu gabinete no palácio do governo e pediu que eu não assinasse a abertura da CPI Lava Toga. Pediu, também, que eu saísse do grupo Muda Senado, um grupo independente que defende a bandeira de que devemos fazer o que é certo, doa a quem doer. Eu disse que não me pedisse algo que eu não pudesse entregar."
Jair Bolsonaro queria deixar o STF em paz por qual motivo?
"Em seu gabinete ele me disse "tenho de amenizar com esses caras do Supremo. Veja o caso do meu filho (investigação sobre as rachadinhas de Flávio), a política de meio ambiente. Eles não vão-me deixar governar". Eu não o apoiei. Nesse dia ele não forçou mais, mudou de assunto. Até fomos juntos a um evento no Clube da Marinha.
Pouco tempo depois, e com a apuração das rachadinhas de Flávio Bolsonaro já em curso, eu era líder do PSL e tínhamos duas senadoras que eu não conhecia, eram Selma Arruda e Soraya Thronicke. Nos encontramos e conversamos sobre quem assumiria a liderança do PSL, eu estava disposto a sair da liderança para me dedicar ao meu mandato. Mas as duas senadoras não deixaram: "Deus nos livre, Major! Esse cara (Flávio Bolsonaro) envolvido com essas safadezas de rachadinhas, como pode ser nosso líder? Os cargos e funções da liderança estarão com ele. Ele vai nos sujar. Vai ter de ser você. Primeiro por ser veterano na câmara e conhecer os trâmites dos processos. Segundo porque esse sujeito a gente não quer."
Mas Flávio queria ser líder? "Sim. Ele chegou a se insinuar em assumir a liderança mas as duas senadoras disseram que defendiam meu nome. Convencido por elas, eu disse que também queria e acabou três a um o placar. Claro que passei a observar a mudança de postura comigo se acentuar ainda mais. Sobretudo porque eu continuava a busca por assinaturas de senadores para darmos início à CPI Lava Toga, isso aparecia nos media diariamente.
No dia 21 de agosto de 2019, em torno de 21h, as duas meninas (senadoras) me ligaram a dizer que haviam recebido telefonemas de Flávio com total descontrolo, grosseria e xingamentos. Disseram que ele tentara falar comigo mas eu não o atendia."
(o senador mostra seu telemóvel com dezenas de mensagens e ligações que surgiram no pequeno intervalo entre o início de nossa entrevista até aquele momento e diz: se eu ficar a olhar o telemóvel, não consigo falar com você. Se não o atendi, foi porque estava ocupado.)
"Liguei ao Flávio para saber o que estava a acontecer e o encontrei com o demónio no corpo. Ele disse, "eu pedi votos para você! Vocês querem me f.....", respondi que não estávamos a fazer nada contra ele. Descontrolado, passou a xingar-me violentamente. Eu pago para não entrar em briga, mas se entro vou até o fim. Passei a xingá-lo de volta. Acredito que o aparelho estava no viva voz, o pai (presidente) assumiu a conversa a mostrar mais descontrolo ainda e disse aos gritos: "você só foi eleito por minha causa!". Respondi que grande parte dos meus votos eram sim por causa dele, eu reconhecia. Mas isso não me obrigava a participar de ações criminosas. Ele passou a xingar-me muito e eu devolvia a gentileza com as mesmas doces palavras. Essa foi a última vez que falei com Jair Bolsonaro. Mas se não tivesse ocorrido essa rutura depois desses eventos, acabaria por acontecer de qualquer forma mais adiante."
Por quê? "Porque o discurso do Bolsonaro e de seus seguidores hoje é semelhante ao que dizem Lula e seus seguidores: "Onde está a prova que esse menino, meu filho, tomava dinheiro de funcionários na assembleia do Rio de janeiro? E a prova de eventual vinculação dele ao Adriano?" (Adriano da Nóbrega, chefe da milícia Escritório do Crime. Flávio chegou a homenagear Adriano na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro - ALERJ, e a visitá-lo quando estava preso a responder por homicídio. Parentes de Adriano trabalhavam em seu gabinete.) Onde está a prova de que a Val do Açaí (Walderice Santos, investigada por receber dinheiro público via gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro sem trabalhar na assembléia) passava uma vez por mês para cortar o mato em nossa casa de Angra dos Reis? E a prova de que o (Fabrício) Queiroz operava a rachadinha e pagava as minhas contas?" (Fabrício Queiroz é considerado o operador das rachadinhas no gabinete de Flávio Bolsonaro. Era o titular da conta bancária onde foram depositados os valores desviados. De onde saíram depósitos até para Michele, esposa de Bolsonaro. Sua relação com a família vai muito além das rachadinhas). É exatamente o mesmo discurso que Lula usava quando exigia provas sobre o sítio de Atibaia ou sobre o tríplex no Guarujá. Curiosamente o Queiroz foi preso quando estava foragido no sítio do advogado da família Bolsonaro em Atibaia, veja só que mundo pequeno. A única diferença entre os dois grupos é o tamanho do orçamento. Se essa prática não mostra quem eles são, me diga o que isso significa."
O senhor acredita que eles sejam tão corruptos quanto aqueles do governo Lula condenados pela Lava Jato? "Não existe esse negócio de tanto quanto. Ou você é, ou não é. Isso me faz lembrar uma brincadeira grosseira que um apresentador de tevê fez com uma artista que havia sido capa de Playboy. Eles comentavam sobre o filme Proposta Indecente e o entrevistador pergunta se ela iria para a cama com um homem desconhecido por um milhão de dólares. Rapidamente ela disse "por um milhão de dólares? sim, claro!", sob risos e aplausos da plateia. Então ele pergunta "e por 100 dólares?" Ela diz "aí não, né. O que você acha que eu sou?" Ele responde: "Isso eu já sei, só estou a discutir o preço".
Não dá para comparar em valores o que a quadrilha Lula fez e o que está a acontecer. Ou mesmo na forma. Entretanto, a essência do crime não está no valor, mas na conduta.
Um pegava bilhões no esquema Petrobras, em obras públicas. Perto disso eles são ladrões de pirulitos. Eu não afirmo que isso ocorra durante o exercício do mandato, mas é o precedente da rachadinha, funcionário fantasma. Qual é a diferença? Um estava a se locupletar no crime de peculato, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro. O outro a comprar imóveis, loja de chocolate, compra isso e aquilo. O dinheiro é honesto? Não. É criminoso? Sim.
O grupo do Lula passou do clube dos mil milhões em desvio. Já agora, os mecanismos do Ministério Público têm falado que os Bolsonaro amealharam algo em torno de 30 milhões de reais em 28 anos. Aí você ouve os discursos dos seguidores que diziam lutar contra a corrupção, "isso não é quase nada!", "rachadinha é uma colaboração para ajudar gastos do gabinete, coisinhas bestas". O funcionário ganha dez mil reais e recebe de fato um mil reais. Os outros nove são extorquidos dele numa prática criminosa. É crime.
A rachadinha é uma prática comum dentro das câmaras de deputados? "Muito! Dentro da política brasileira. Mas fato de estar impregnado na política, não significa que seja correto praticar. As redes sociais do Bolsonaro tentam transformar isso em algo normal. "Todo mundo pratica a rachadinha." Ele mesmo disse: "89 mil reais que colocaram na conta da minha mulher dá 800 reais/mês em 10 anos, vão agora dizer que isso é propina?" Não sei se é propina, mas tenho certeza de que é desvio criminoso.
Há poucos dias "engavetaram" um caso semelhante de rachadinha em Alagoas de um político próximo a Bolsonaro."Exatamente, o deputado Arthur Lira (Partido Progressista - AL), foi absolvido por um juiz de primeira instância no caso de rachadinha em uma operação de 225 milhões de reais. O Ministério Público de Alagoas está a recorrer da decisão. Lira é o candidato de Bolsonaro à presidência da câmara. Veja a que ponto chegou. Eles se aproximaram de tudo aquilo que criticavam na campanha, por isso parecem uma metralhadora giratória. Atiram o tempo todo em quem os enfrenta com esse fato.
E qual o papel do Queiroz no esquema de que o acusa, de pertencer a ORCRIM - Organização Criminosa. Mero operador financeiro da rachadinha do Flávio Bolsonaro? "Eu não tenho dúvida de que o Queiroz era tesoureiro dessa organização criminosa. Não era um amigo de pesca que enganou o coitado do pai do deputado."
O gabinete do Flávio empregava a ex-mulher e a mãe de Adriano Magalhães, um criminoso envolvido com a milícia do Rio de Janeiro... "...e abrigava também a tia do ministro José Jorge de Vasconcelos Lima - Tribunal de Contas da União (TCU). Assim como a mãe desse ministro foi funcionária do gabinete do então deputado Jair Bolsonaro. Mas olha, essa coisa de envolvimento com milícia eu prefiro não acreditar e não poderia fazer qualquer afirmação que seria leviana."
Talvez não fosse prudente abrir mão do negócio. "Na conveniência eu poderia ter sido ministro, ter sido líder do governo. E veja só que curioso, pode pesquisar, eu sou um dos senadores que mais votam com as pautas do governo, desde que necessárias ao país. Isso porque eu sou um senador "0800" (referindo-se à ligação telefónica gratuita), eu sou de graça. Se há uma medida para o bem do país, eu voto com o governo. Mas eu quero distância do presidente e do que ele representa nesse submundo.
Há poucos dias eu defendi que o uso do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) não pode ser desviado para escolas privadas, deve ser direcionado exclusivamente ao ensino público para que possamos erradicar o analfabetismo e melhorar as condições atuais das escolas públicas no Brasil. Foi uma emenda parlamentar de um grupo ligado às igrejas que tentou morder parte desse dinheiro para as escolas confessionais (ligadas a igrejas). Comigo não!
Por outro lado, imagine se o governo diz: olha, a qualidade de ensino das escolas confessionais é excecional, são mais de dois milhões de alunos no Brasil. Nós vamos tirar 200 milhões aqui de publicidade do governo e vamos injetar esse dinheiro no ensino confessional. Teria meu aplauso. Ora, para um governo que diz que a verdade está nas redes sociais, não é preciso que tenha contratos milionários e dirigidos a emissoras de tevê, jornais, revistas, que é o que eles fazem: "agora é hora de ajudar o SBT, é hora de crescer a Record que está com a gente. Agora é hora de ferrar a Globo, é hora de ferrar a Folha de São Paulo". Não tem isso de prestigiar ou prejudicar os media. Pegue uma parcela desse recurso e coloque nas escolas confessionais. Apoio na hora."
Por falar em Rede Globo, Bolsonaro trava uma guerra contra a empresa. Ameaça prejudicar na renovação da licença que se dará no seu mandato. O senhor acha que ele consegue azedar a Globo? "Não. Existe uma legislação que ele nunca leu. A concessão não é uma coisa que ele aprova ou não, isso passa pelo congresso. Se estiver dentro da lei, pagar impostos e estiver a atender aos requisitos necessários, está tudo certo. É bravata para os seguidores o aplaudirem e terem o que compartilhar nas redes sociais."
Aparentemente, uma verba de aproximadamente 3.5 mil milhões do combate à pandemia teria sido distribuída pelo governo entre senadores e deputados de forma irregular. "O governo me procurou e disse "o senhor tem direito a 30 milhões de verba para a saúde" - não conseguem rebater-me porque é verdade. Eu disse, como é que é isso? Será para todos os senadores? "Não." Quais são os critérios? "O senhor pega esta planilha aqui e onde precisa indicar qual é a ação, escreva Covid-19. Em 30 dias o dinheiro estará liberado." Eu questionei se não haveria uma regra, alguma portaria do Ministério da Saúde para direcionar onde tenha mais contaminados, volume populacional, lugares com menos respiradores... "Não, para onde o senhor mandar, vai."
Teoricamente, era dinheiro para ser usada na área de saúde, "mas tivemos municípios em Goiás - e isso está a ser apurado pelo Tribunal de Contas do Estado, da União e pela Procuradoria da República -, que "recebeu" seis milhões de reais sendo que possui apenas 28 mil habitantes e quase não teve "verba Covid-19". "Obvio que esse dinheiro sem licitação por conta da pandemia, foi usado em grande parte para bancar um monte de campanha eleitoral. Meu amigo, você precisa só justificar que foi investido na saúde. Então o prefeito diz "bom, vou justificar que vou fazer um complemento de uma Unidade de Pronto Atendimento - UPA". Não tem licitação, é verba Covid-19 ele não faz nem licitação, nem obra. Uma das coisas mais criminosas e porcas que já vi na política. Vou continuar a apurar e cobrar os tribunais sobre isso. Foi uma afronta. 30 milhões é o dobro do recurso que um senador tem direito a fazer indicações em um ano. Foi um derrame de dinheiro às escuras. Foi escondido, não foi anunciado, não houve transparência. Lógico que tem coisa errada nisso, tem desvio.
É errado dizer que Bolsonaro deu um bypass nas Forças Armadas ao se tornar seu chefe maior, uma vez que foi "convidado a se retirar" da corporação? A maneira como ele trata os generais passa essa imagem. "Voltamos aos problemas psicológicos do presidente e de seus filhos. Não definiria como vingança, mas um sentimento de prazer por ter dado a volta por cima. Quando Bolsonaro se elegeu vereador no Rio de Janeiro, ele era um político contundente que brigava por salários, a apoiar as bandeiras das Forças Armadas. Ele chegou a ser colocado para fora a força do portão das armas da academia das Agulhas Negras. Em outra ocasião ele e seus filhos foram expulsos de uma praia de uso privativo dos militares, se não me engano na Urca. Isso deixou um sentimento de amor e ódio. Daí ele tirar da boca do atual ministro da saúde, general Eduardo Pazuello: "É simples assim. Um manda, o outro obedece". O general disse isso prostrado, foi vergonhoso para as Forças Armadas. Por outro lado, o general Heleno era o grilo falante dele na campanha. O homem que ele mais ouvia. Heleno tem uma formação impecável, sempre em primeiro lugar na turma. Ao final da eleição ficou definido que ele seria o ministro da defesa. Nosso grupo disse não faça isso. O senhor tem de ser um dos ministros dentro do palácio. O senhor é a única pessoa que ele obedece."
Quanto ao Vice-presidente general Hamilton Mourão, é "outro muito bem preparado intelectualmente". "Você conversa com o Bolsonaro e diz: Olímpio, saí mal impressionado. Conversa com Mourão e vai sair encantado. Toda a imagem de um "generalzão" linha dura, ele se desfez. Tanto que quando ele vai falar com o congresso, é o desespero de Bolsonaro. Até os políticos do PT, PCdoB admiram o respeito que ele tem pelo contraditório, sua visão de mundo. Todos que o ouvem dizem: ganhou meu respeito."
Mas ele também não alisa o Bolsonaro. "Depois de dois anos de mandato, chegou ao descalabro do Bolsonaro se afastar para ir a um evento do Mercosul, na Argentina, e o Carlos Bolsonaro dizer: "estou a ir a Brasília para fiscalizar se o outro não vai trair meu pai". E o Mourão nem mesmo o gabinete presidencial usa quando Bolsonaro está afastado. Ele prefere despachar de seu próprio gabinete. A desconfiança é tão grande que Bolsonaro precisou fazer uma cirurgia corretiva no (hospital Albert) Einstein e discutiram que ele ficaria "apenas seis horas anestesiado", portanto não precisaria passar a presidência. Olha o tipo de loucura que é instigada por seus filhos."
Os membros das Forças Armadas não respondem, mantêm o silêncio. "Eles se calam porque Bolsonaro realmente tem deslocado muito recurso para o aparelhamento das Forças Armadas. Mas o sentimento é de indignação. Eu sou da comissão de relações exteriores de defesa nacional, converso com oficiais generais das três forças. Fui buscar emendas no orçamento para programas das três armas. Eu os ouço. Bolsonaro não os trata com respeito. Outro dia ele postou o artigo da constituição que diz ser ele o comandante-em-chefe das Forças Armadas, para quê? Eles são altamente disciplinados. Eles seguem a Constituição muito mais do que o próprio Bolsonaro. E, se necessário, acima dele."
Será que os Bolsonaro combinam isso às gargalhadas no jantar para colocar em prática no dia seguinte? "Mostre uma foto de reunião dessa família num almoço, todos a se abraçar, sorrindo, tranquilos. Isso não existe. Não há harmonia entre eles. Bolsonaro gravou uma entrevista com o próprio filho Eduardo no Youtube, semana passada. Num dado momento Eduardo brinca a dizer "eu sou um deputado que fez um milhão e oitocentos mil votos". Bolsonaro retruca: "Você fez um. O restante é todo meu." Se ele faz isso com um filho, imagine com os demais ao seu redor. Ao observar atentamente, é doentio. É uma árvore que não quer dar frutos. Só faz sombra."
Resta saber se, com esse perfil legalista das Forças Armadas, seria possível eles alinharem com Bolsonaro numa tentativa de intervenção. "Jamais alinhariam. As Forças Armadas não entram nesse desequilíbrio. Se Bolsonaro tentasse fazer o que Jânio Quadros tentou - renunciar com a esperança de um levante popular a seu favor -, na hora que ele descesse a rampa do palácio estaria sozinho. Não iria arrumar nem carona de um jipe militar até o aeroporto. Teria de chamar um uber. Eles acham que ele é louco."
O senador Major Olímpio tem "a certeza" e até admite candidatar-se a governador de São Paulo "se tiver saúde e condição política. Embora trabalhe pelo bem do meu estado há anos, preciso avaliar o tamanho do estrago que essa quadrilha digital vai causar na minha imagem. Eles me batem o tempo todo, preciso ver de que forma isso impacta na população." Diz que a sua chance seria maior se o candidato do planalto fosse o Davi (Alcolumbre). "É uma campanha muito restrita, são apenas 80 votos." E no que toca a apoios, chama a Bolsonaro "o Mick Jagger da política brasileira. Quem ele apoia, perde - e apoiará a indicação de Davi Alcolumbre." "Nós temos políticos de seis partidos diferentes no Muda Senado. São 18 parlamentares que não querem mais as práticas que herdamos dos políticos corruptos do passado. Queremos mudar a postura do senado e temos seis pré-candidatos até dia 15 de janeiro, quando avaliaremos quem tem mais condições de avançar com a candidatura. O governo Bolsonaro, com o poder da liberação de verbas e cargos, prefere colocar alguém do PT na presidência do senado a me ver assumir essa função."
O senador garante que o chamado gabinete do ódio está a trabalhar contra ele e contra o senador Álvaro Dias, contra a Mara Gabrilli, o Alessandro Vieira, todos pré-candidatos do Muda Senado. E admite que abriria mão de sua candidatura para apoiá-los. "É a avaliação que faremos no dia 15. Eu tenho uma grande simpatia pela candidatura da Mara (Gabrilli). Primeiro porque é uma mulher, isso já nos eleva a um patamar de conquista. Some-se a isso que ela representa, também, uma pessoa que enfrentou as limitações da tetraplegia causada por um acidente de carro, e nos dá uma aula de resiliência quotidiana. Essa mulher forte na presidência do senado federal teria meu apoio e seria uma referência internacional. Da mesma forma acredito que, se eu estiver melhor cotado, ela abriria mão em meu apoio."
Até porque, quando os Bolsonaro fazem declarações absurdas, o propósito é criar ruído para abafar os demais problemas. "Sempre que você tem um aprofundamento das investigações do esquema das rachadinhas do Flávio, eles falam algum absurdo. Tipo dizer que "ao acabar a saliva com a diplomacia americana, é hora de usar pólvora". Aí é manchete nos jornais, nos telejornais, na internet. Uma semana de distração. Bolsonaro e seus filhos não devem ser levados a sério."
O que o senador sente por eles? "Uma preguiça imensa."