O que se vai canonizar?

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Que modelo de santidade se está a propor, quando se decide canonizar as crianças videntes de Fátima? Junto da igreja paroquial de Fátima, a dois quilómetros do santuário, duas estátuas dos agora novos santos propõem, nas legendas, "Acolher como Jacinta" e "Contemplar como Francisco". É verdade que o discurso de Fátima e da Igreja em geral tem insistido muito nestas ideias e em outras semelhantes. O problema é saber como penetram tais conceitos em algum catolicismo popular que desagua em Fátima e que fica, muitas vezes, por expressões de religiosidade mais distantes do Evangelho. Na beatificação dos mesmos videntes, o papa João Paulo II disse, em Fátima, que Francisco viveu uma transformação "radical", passando a entregar-se a "uma vida espiritual intensa". Jacinta, disse ainda o papa em Maio de 2000, vivia também "animada pelos mesmos sentimentos" de fazer o bem e oferecer oração e sacrifícios (leia-se: gestos de renúncia). Ainda bem que o discurso oficial da Igreja retira o que de mais positivo pode haver de um acontecimento que muitos crentes assumiram como seu, independentemente do que digam as autoridades religiosas. Um acontecimento que, recorde-se, o então cardeal Ratzinger definiu como uma "percepção interior", que não coincide com a "percepção externa normal dos sentidos" (ou seja, não são "aparições"). A 13 de Maio, em Maio, em Fátima (ainda não estão confirmados a data e o local; mas não faria sentido que ao anúncio de ontem não correspondesse a canonização por ocasião da visita do Papa), a Igreja não pode canonizar um catolicismo feito de devoções e trocas com o divino, como o de há cem anos. Mesmo sabendo que o catolicismo prático e "muito híbrido" de que fala o antropólogo Alfredo Teixeira continua muito presente em Portugal, esse trabalho de purificação terá de ser redobrado.

Jornalista do religionline.blogspot.pt

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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